Acompanhada pela Sinfonieta de Lisboa, dirigida por Jaques Morelenbaum, Mariza afirmou definitivamente perante Lisboa as certezas de uma nova voz e alma fadista, num concerto notável na qual a sua sobriedade performativa fez par perfeito com os discretos arranjos para guitarras e cordas (e pontuais percussões) que se fizeram escutar. Transparente reafirmou-se como um disco que vai marcar o ano. E as memórias convocadas vestiram-se de acordo com a sonoridade dominante. Foi na noite de terça-feira. A plateia, expressiva e jovem, mais parecia saída de um festival de Verão, cabendo à banda sonora o sublinhar da diferença. Frente ao palco, aceitando a velha máxima, fez-se silêncio, que se cantava o fado. Mas mais atrás, sem cadeiras para sentar os rabos, a multidão dividia-se entre a atenção e a conversa... de relvado. Duas tias discutiam a novela, sentadas. Com pausa para aplaudir a canção que certamente não tinham escutado. Um grupo, barrigudo, parecia estar em plena sardinhada, gargalhada vai, sardinha vem. Um cavalheiro passou todo o concerto de costas, quem sabe se a pensar nos bifes da Vela Latina ali à sua frente... Outra falava ao telemóvel. Que soava, e bem! O burburinho mais parecia textura de disco de Brian Eno. Constante, atonal, presente... Bchh bchh bchh... E a dada altura, em plena surdina a meio de um fado, uma velhota, saco de plástico numa mão, carrinho de compras bem gasto na outra, gritava ao ar da noite: "quem quer comprar água?". Foi a gota da dita, e houve quem não evitasse a gargalhada perante o que parecia impossível. Para que é que esta gente se incomoda e sai de casa? Não podiam ficar a falar à janela? E a vender água à vizinha?
MAIL