domingo, novembro 30, 2025

Kleber Mendonça Filho, na primeira pessoa

[ FOTO: Reinaldo Rodrigues / DN ]

O realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho continua a evocar histórias e fantasmas do seu país. Premado no Festival de Cannes, o seu filme mais recente, O Agente Secreto é o candidato do Brasil a uma nomeação para o Oscar de melhor filme internacional — esta entrevista, realizada em Lisboa (24 julho), foi publicada no Diário de Notícias (5 novembro).

No passado mês de maio, O Agente Secreto foi um dos grandes acontecimentos em Cannes, tendo recebido dois dos prémios mais importantes do festival, atribuídos a Kleber Mendonça Filho (realização) e Wagner Moura (interpretação). Evocando histórias vividas durante a ditadura militar, Kleber Mendonça Filho propõe um labirinto de factos e emoções em que as convulsões políticas se cruzam com memórias indissociáveis da sua própria família — o resultado envolve-nos através de uma teia dramática que nos remete para a discussão do que, nestes tempos de saturação televisiva, é ou pode ser um certo realismo histórico.
Com chancela da Nitrato Filmes, distribuidora que se tem empenhado na divulgação da produção cinematográfica brasileira, o filme chega amanhã [6 novembro] às salas de todo o país, integrando também a homenagem a Wagner Moura organizada pelo LEFFEST — o actor estará presente na sessão de O Agente Secreto marcada sexta-feira [7 novembro], no Cinema Nimas.


A acção de O Agente Secreto decorre em 1977, ou seja, o ano em que celebrou o seu nono aniversário. Ora, mesmo sem procurarmos qualquer tipo de aproximação ou coincidência com o protagonista do filme, será que, para si, faz sentido dizer que no filme há alguma componente autobiográfica?
Creio que há várias maneiras de responder a essa pergunta. Por exemplo, gosto muito do filme Zodíaco [2007], de David Fincher. Claro que não acho que Fincher tenha qualquer relação com a história daquele assassino. O certo é que, além de ser um “thriller” sobre um “serial killer”, há nele uma força que resulta do facto de ser uma reconstituição da cidade onde, em criança, o próprio Fincher viveu — vi o filme pela primeira vez em Cannes, no Auditório Lumière, já lá vão 18 anos, e a densidade dos detalhes impressionou-me imenso. Quis que O Agente Secreto tivesse também esse tipo de densidade: não é sobre nenhum facto histórico, é antes sobre a recordação muito viva de uma época.

Época que, portanto, o marcou de forma especial...
Na primeira entrevista que dei para o dossier de imprensa do filme, fui muito sincero quando disse que essa época me marcou porque aconteceu uma crise de saúde da minha mãe. Não quer dizer que tenha uma memória prodigiosa e me lembre de tudo de 1977, 78, 79... Lembro-me por causa dessa crise e também porque, na altura, o meu tio mais novo me levava ao cinema, com o meu irmão, para nos tirar da realidade da casa — guardei uma impressão muito forte dessas idas ao cinema. Daí que tivesse uma base sentimental para escrever o argumento de O Agente Secreto. O resultado é um quebra-cabeças que vem de histórias que ouvi contadas pela minha mãe, pelos meus tios e o meu pai... Sem esquecer que, desde muito criança, adorava ler os jornais, e não só pelo cinema (porque já era um jovem cinéfilo), também pela parte literária, ao domingo, e pela curiosidade mórbida de ver as fotos da página policial que, em boa verdade, eram muito mais francas do que são hoje. Lembro-me de ter ficado muito impressionado com a cobertura fotográfica do sequestro de Aldo Moro, em Itália. Hoje existe uma série de protocolos sobre como mostrar a vítima de um assassinato ou um atropelamento — naquela época, era tudo muito franco, como a foto que aparece no final do meu filme.

Como é que tudo isso marcou o trabalho de “reconstituição” histórica?
Tenho agora 56 anos. Quando envelhecemos, é como se conseguíssemos ver a história a acontecer à nossa frente. Isso vai desde a chegada de uma nova tecnologia, até ao uso do papel e ao facto de usarmos cada vez menos o papel. Ou ainda as mudanças políticas no meu país: a forma como hoje recuperámos um certo sentido de democracia, quando há dez anos estávamos num charco de autoritarismo... Vem daí uma base histórica para perceber o mundo, associado à experiência da minha própria cidade — sou do Recife e gosto muito do Recife.

Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho na rodagem de O Agente Secreto

Qual a importância da escolha do formato largo das imagens (uma variação do clássico CinemaScope)?
Não terá sido uma escolha cartesiana que eu possa explicar... Por exemplo, uma escolha desse género foi feita em Parque Jurássico [1993], de Steven Spielberg, um belo filme de aventuras: o filme foi feito num determinado formato (o chamado 1x1.85) porque era nesse formato que os dinossauros “encaixavam” melhor — é uma boa explicação. Ora, não tenho uma explicação desse tipo para O Agente Secreto. É certo que o meu desejo de fotografar passaria sempre pelo formato anamórfico (1x2,40), ou seja, o Panavision. É um formato ligado à minha formação como cinéfilo e cineasta, sobretudo através de muitas produções dos anos 1970/80 que vinham dos EUA — filmes de John Carpenter, Brian De Palma e Robert Altman, ou ainda os Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Spielberg.

E de onde vem Marcelo, a personagem de Wagner Moura, que afinal se chama Armando? Ou o Armando que responde pelo nome de Marcelo? Mesmo não conhecendo em pormenor a história do Brasil, dá para perceber que teve vivências de carácter político e, por isso mesmo, em plena ditadura, chega ao Recife para se esconder, dir-se-ia para se refugiar na sua própria cidade.
Tudo começou com as histórias que os mais velhos me contaram e as muitas coisas que aconteceram ou poderiam ter acontecido. Acima de tudo, queria um herói clássico, de enorme empatia, grande carisma, que poderia ser interpretado por James Stewart — ou pensando em termos dos anos 70, por Jack Nicholson, como em Profissão: Repórter [Michelangelo Antonioni, 1975]. O Wagner é capaz de gerar essa empatia. Queria que o filme ilustrasse aquele ditado soviético: “Nunca uma boa acção ficará sem punição”. Tudo o que Marcelo fez está certo e correcto, e ele vai pagar pelos seus pecados — é essa a lógica de uma ditadura.

Seja como for, um dos trunfos mais fortes do filme decorre do facto dessa empatia não poder ser reduzida a uma identificação política.
Não, não pode. Mas hoje se você diz “eu acredito nas vacinas”, isso deveria ser apenas uma afirmação científica, baseada em pesquisas, mas pode ser transformado num discurso político. Alguém dirá “você é um liberal, é de esquerda” — mas não, “só quero que os meus filhos sejam vacinados”. A ideia de que a personagem está cheia de razão, sendo esse precisamente o seu problema, é algo que acho muito interessante num ambiente político autoritário.

Como foi o trabalho de composição de Wagner Moura?
Ele teve muito em conta algum paralelismo com o O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, uma peça que representou recentemente no Brasil [o mesmo espectáculo virá a Lisboa, ao CCB, em julho de 2026]. Queria que fosse, realmente, um herói clássico, embora diferente do herói clássico americano — ele não anda armado. Aliás, isso é discutido no filme — “Tem que andar armado, impõe respeito...” —, o que, além do mais, é uma questão que, nos últimos dez anos, voltou ao Brasil.
[ FOTO: Vítor Jucá ]

Mas será que faz sentido dizer que o filme é uma metáfora do Brasil contemporâneo?
Foi ingenuidade minha. Quando estava a escrever o argumento, pensei que o facto de a acção se passar em 1977 faria de imediato com que as pessoas “comprassem” a ideia de que era, realmente, em 1977… O certo é que a primeira vez que mostrei aos meus amigos, disseram logo: “Mas o filme é sobre hoje!” Um fracasso! [riso]. A questão é que voltaram ao Brasil algumas discussões arcaicas dos anos 1990/2000 — como brasileiro, isso choca-me muito.

Pode dar um exemplo?
Injúrias, discursos misóginos, homofóbicos, racistas e até preconceitos em relação ao Nordeste...

Essa capacidade de revisitar o passado, afinal fazendo-nos falar também do presente, pode ser encarada também como uma herança, não estética, mas simbólica, do Cinema Novo brasileiro?
Não sei. Nos meus 20 anos, como jovem cinéfilo, aspirante a cineasta, irritava-me um pouco com a presença constante do Cinema Novo como uma espécie de “medida” para tudo o que se fazia no cinema brasileiro. Nos anos 90, quando eu estava a começar, qualquer coisa que se fizesse era colocada “contra” algum filme do Cinema Novo. Agora, quando se fala disso, acho que vejo uma beleza maior, tudo passou a ser visto com mais naturalidade.

Podemos, talvez, recordar a obra de Glauber Rocha, pensando, por exemplo, em António das Mortes [1969]: é um filme com uma dimensão política contaminada por muitas formas de misticismo. Ora, mesmo não esquecendo as muitas diferenças, talvez se possa dizer que também sentimos isso em O Agente Secreto.
Sim, mas apenas porque, não sendo eu uma pessoa religiosa, acho incrível o suco de sentimentos não cartesianos que conduzem a vida no Brasil — por exemplo, há ateus que, no dia 31 de dezembro, se vestem todos de branco para passar o ano a dar pulos nas ondas do mar, em homenagem a Iemanjá... E não pertencem, obviamente, a um qualquer bando. É uma coisa nacional. Embora seja complicado e envolva outras questões, é quase como vestir a camisola amarela num jogo da seleção brasileira — vai além da ideia de patriota, funciona como um uniforme nacional. Veja-se a Dona Sebastiana [Tânia Maria]: ela recebe a personagem do Wagner com uma limpeza espiritual do apartamento — passou sal grosso, o apartamento está limpo. E não é limpo de poeira, é limpo espiritualmente. O Brasil possui uma força poética feita dessa mistura de sentimentos e espiritualidade. Afinal, queremos entender o que somos. Para mim, O Agente Secreto é muito sobre isso, sobre alguém que não tem a certeza daquilo que é...

Nesse sentido, a personagem do Wagner não se esgota num discurso meramente militante.
Não, é um facto. Trago comigo o suficiente para perceber que também faço parte disso, mesmo não perguntando como — para mim, isso é fascinante no Brasil. A minha companheira é francesa e sempre que, num restaurante, ela coloca a bolsa no chão, eu pego imediatamente nela e coloco-a numa cadeira. Não se pode colocar a bolsa no chão porque, no Brasil, significa azar — não me pergunte porque é que eu faço, mas eu faço.

sábado, novembro 29, 2025

Memórias de 2025
* SOUND + VISION Magazine / FNAC [20 dez.]

A próxima sessão do Sound+Vision Magazine terá lugar a 20 de dezembro (17h00), propondo um inventário de algumas memórias (musicais, cinematográficas) que marcaram o ano de 2025 — como habitualmente, na FNAC Chiado.

A IMAGEM: Pierre Bonnard, 1931

PIERRE BONNARD / Museu Bonnard [Cannes]
La Toilette
1931

Brandi Carlile, Opus 8

Utópico? Distópico? Com o tema Human, Brandi Carlile baralha (e volta e dar as regras) das nossas lendas graças a um sedutor teledisco apocalíptico, ma non troppo, assinado por Floria Sigismondi (autora, por exemplo, de Dead Man Walking, de David Bowie) — é uma das canções de Returning to Myself, oitavo álbum de estúdio da cantora norte-americana.
 

sexta-feira, novembro 28, 2025

In memoriam
— Udo Kier (1944 - 2025)

Carne para Frankenstein (1973)

Actor de múltiplas transfigurações, vividas a partir de um pathos de pose austera e enigmática, o alemão Udo Kier faleceu no dia 23 de novembro, em Palm Springs — contava 81 anos. Como um puzzle em eterna reconversão, a sua filmografia resulta de encontros com os mais diversos autores, de Paul Morrissey (Carne para Frankenstein, 1973) até Kleber Mendonça Filho (Bacurau e O Agente Secreto, respectivamente de 2019 e 2025), passando por Lars von Trier (Dogville, 2003) — sem esquecer, claro, as várias colaborações com Rainer Wertner Fassbinder, incluindo A Terceira Geração (1978).
Qual fantasma acolhedor, contracenou com Madonna, sob a direcção de Bobby Woods, no teledisco de Deeper and Deeper (1992).
 

>>> Obituário em The Guardian.
>>> Udo Kier na Wikipedia.

Kathryn Bigelow: o apocalipse pode esperar

A House of Dynamite: o mesmo helicóptero, mas a narrativa é outra...

Com o seu novo filme, A House of Dynamite, Kathryn Bigelow reencena o medo das armas nucleares como um desafio ao próprio cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 outubro).

Espaço e tempo. Que mais há no cinema? Não muito mais, para dizer a verdade. O certo é que, num contexto saturado de sermões politicamente correctos, os filmes tendem a ser resumidos, promovidos e interpretados como objectos descartáveis. O seu suposto valor esgotar-se-ia nos “temas” com que podem satisfazer a avalanche mediática que contamina a nossa realidade, avalanche que se quer impor como a totalidade dessa realidade. No limite mais pueril, e também mais nefasto, desta miséria cinéfila, já terão nascido os/as “influencers” capazes de proclamar que O Mundo a seus Pés (1941) se esgota num panfleto sobre a liberdade de imprensa — como se isso bastasse para aceder ao génio de Orson Welles e, sobretudo, compreender a complexidade do seu legado formal, narrativo e existencial.
Descrevo este estado das coisas para, face ao novo filme Kathryn Bigelow — A House of Dynamite/Prestes a Explodir (Netflix) —, eu próprio evitar ceder à facilidade de o esgotar na inquietação humanista que dele emana. Sim, é um facto que esta história assombrada — com o sistema de defesa dos EUA a enfrentar a ameaça de um míssil de origem desconhecida que está a 19 minutos de destruir a cidade de Chicago, provocando pelo menos 10 milhões de vítimas — contém uma contundente mensagem que não deixará ninguém indiferente. A saber: as armas nucleares podem destruir o nosso planeta. Mas como em tempos lembrava um verdadeiro artista: “se se faz um filme para mandar uma mensagem, mais vale usar o correio...”
Acontece que não estamos perante uma vulgar saga apocalíptica, dessas que desembocam na chegada de um qualquer super-herói da Marvel para nos dizer (atenção à mensagem!) que o planeta está feito em cacos, mas anuncia-se uma nova era de felicidade... Que é como quem diz: ao espectador não é oferecida a gratificação simplista de um desenlace cuja única função moral (aliás, moralista) seria rasurar a perturbação com que tudo começou.
Falemos, por isso, de espaço. Quanto mais os especialistas da sala de emergências da Casa Branca contemplam a rota abstracta do míssil apocalíptico (os ecrãs que têm à sua disposição são mesmo uma forma de fazer política), tanto mais as coordenadas espaciais se vão diluindo numa terrível generalização: o "além" do local do impacto confunde-se com o “aqui” da respectiva observação. Ou ainda: a globalização em que vivemos (a começar pela globalização militar) gerou um ecumenismo perverso em que todas as diferenças se equivalem numa só maneira de viver — e, claro, morrer.
E não esqueçamos o tempo. Com uma agilidade rara no cinema do nosso presente, o argumento assinado por Noah Oppenheim, embora parecendo enunciar um ciclo de acontecimentos que só pode ter um final (a explosão do míssil), funciona, afinal, como uma máquina interminável de relançamento do pânico que a nossa civilização nuclear gerou. Assim, quando se chega ao fatal 19º minuto, a história “interrompe-se”, volta atrás e recomeça noutro lugar, com outras personagens. Ou seja: a contagem fatal voltou a zero, embora mantendo a barreira mortal dos 19 minutos...
Lembramo-nos, por isso, da arte argumentativa de Joseph L. Mankiewicz (por exemplo, em A Condessa Descalça, um título de 1954) em que o tempo se repete como fantasma das suas próprias medidas — pode-se fugir de um espaço para outro, mas não é possível abrir a porta e escapar ao metódico fluir do tempo. E podemos recordar também esse filme genuinamente visionário que é Jogos de Guerra (1983), de John Badham, com o jovem Matthew Broderick num dos seus primeiros papéis, em que a civilização do virtual (entenda-se: dos computadores) vai fundindo todas as acções humanas numa ideia de “jogo”, precisamente, incluindo a experiência indizível da morte.
O filme de Kathryn Bigelow é tanto mais envolvente quanto, de facto, o que nele vemos e ouvimos — das salas de controle militar até aos discursos codificados dos políticos — passou a fazer parte do nosso quotidiano televisivo. Não falta sequer o helicóptero presidencial em que, neste caso, o Presidente dos EUA, interpretado por Idris Elba, é retirado para um lugar seguro. Dito de outro modo: a agitação no nosso espaço e os ziguezagues do nosso tempo obrigam-nos a repensar, seriamente, os usos da palavra “realismo”.

quarta-feira, novembro 26, 2025

A IMAGEM: Mohammed Salem, 2025

MOHAMMED SALEM / Time
Palestinianos junto à sua casa destruída, em Jabalia,
no norte da Faixa de Gaza
3 fevereiro 2025

sábado, novembro 22, 2025

Roy Orbison em 1965

Foi há 60 anos, em novembro de 1965: Roy Orbison já não era editado pela Monument Records, tenddo mudado para a MGM; rentabilizando o seu legado, a Monument lançava uma antologia Orbisongs em que uma das novidades era a versão stereo de Oh, Pretty Woman, cujo single surgira um ano antes — eis uma performance da canção, num Monument Concert, realizado também em 1965.
 

sexta-feira, novembro 21, 2025

Vangelis & Carl Sagan

Vangelis e Carl Sagan — eis a dupla que serviu para definir o mote da nossa sessão de hoje, na FNAC. Ou seja: primeiro, o álbum Heaven and Hell, de Vangelis, editado há 50 anos; depois, a série do americano Sagan, Cosmos: A Personal Voyage (1980-81), que utilizava um tema do álbum do compositor grego no respectivo genérico — aqui estão essas memórias cruzadas.