Depois de Queer, adaptado de William S. Burroughs, o italiano Luca Guadagnino encena um grupo de personagens assombrado por um caso de agressão sexual: Depois da Caçada fica, desde, já, como uma das grandes estreias de 2025 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 outubro).
O novo filme de Luca Guadagnino, Depois da Caçada (título original: After the Hunt) poderá resumir-se como um drama familiar que vai deslizando para os sobressaltos de um “thriller” psicológico. No seu centro encontramos a personagem de Alma Imhoff (Julia Roberts), uma respeitada professora da Universidade de Yale, que se vai descobrir encurralada num labirinto de factos e insinuações: a sua aluna preferida, Maggie (Ayo Edebiri), acusa Hank (Andrew Garfield), colega e grande amigo de Alma, de agressão sexual...
Entenda-se: Depois da Caçada não é uma dessas narrativas moralistas em que os “bons” e os “maus” estão definidos antes mesmo de acontecer o que quer que seja. Alimentando muitos fundamentalismos — todos os dias potenciados nos ecrãs televisivos —, tais narrativas apenas servem para reduzir a complexidade das relações humanas a “sermões” da futilidade ideológica e mediática dos discursos politicamente correctos.
Depois da Caçada é tudo menos isso. Se mais não fosse, o filme de Guadagnino distinguir-se-ia pela capacidade (pedagógica, sem dúvida) de encenar um universo peculiar — a comunidade intelectual de Yale — como uma câmara de eco de um fenómeno eminentemente contemporâneo. A saber: a consagração de valores (ou da falta deles) que tende a reduzir homens e mulheres a símbolos mecânicos de um mundo em que os “puros” estão vocacionados para investigar e, sempre que possível, esmagar os “impuros”.
Daí o valor desta admirável proeza cinematográfica, sem hesitação um dos filmes maiores de 2025. O que acontece em Depois da Caçada é produto de um entendimento eminentemente clássico do trabalho narrativo, integrando dois vectores fundamentais: primeiro, a importância do argumento como peça vital da estrutura de um filme e, nessa medida, do envolvimento intelectual e afectivo (não necessariamente por esta ordem) do espectador; depois, o papel decisivo do labor dos actores, muito longe de qualquer “reencarnação” da Inteligência Artificial.
Se ao espectador comum, condicionado pelas contaminações digitais de super-heróis e afins (veja-se a mecanização de um actor tão talentoso como Jared Leto no recente Tron: Ares), ainda resta algum gosto pela verdade humana dos actores, Depois da Caçada tem algo de genuíno para lhe oferecer. Lembremos o paralelo esclarecedor com a anterior realização de Guadagnino, Queer (2024), genial adaptação do romance de William S. Burroughs, com Daniel Craig.
O elenco reunido por Guadagnino distingue-se pelas suas infinitas nuances expressivas, sendo inevitável destacar a performance de Julia Roberts, há muito liberta da herança de Pretty Woman (1990), aqui expondo a perturbação mais secreta de uma mulher desafiada a enfrentar as fragilidades da própria verdade que construiu. Sem esquecer o sempre subtil, quase discreto, Michael Stuhlbarg no papel de Frederik, marido de Alma.
Cinema & teatro
Perante a riqueza dos diálogos de Depois da Caçada, haverá uma muito antiga forma de estupidez cultural capaz de atacar este tipo de filme por aquilo que seria a sua dimensão “teatral” (como se o próprio teatro se esgotasse nas palavras ditas pelos actores...). Em boa verdade, Guadagnino devolve-nos as maravilhas esquecidas de um cinema (Frank Capra, Eric Rohmer, Woody Allen, etc.) em que a palavra é tratada como matéria nuclear da organização do mundo.
O que encontramos nos prodigiosos diálogos do argumento de Nora Garrett (nomeação “obrigatória” para os Oscars!) é o poder efectivo, ora transparente, ora ambíguo, da palavra como "coisa” viva de todas as trocas humanas, das mais institucionais às mais íntimas. Neste tempo de muitas discussões ociosas sobre a “verdade” dos factos, Depois da Caçada leva-nos a redescobrir essas trocas como um palco sem quarta parede: aí jogamos, momento a momento, palavra a palavra, o que somos e o que imaginamos ser.


