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O Dinheiro (1983), de Robert Bresson: um conto moral antes do euro... |
Eis uma evidência de todos os dias: na sociedade portuguesa, o futebol é a matéria central da cultura dominante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 agosto).
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Robert Bresson |
Reconheço que há algum mal-estar, próximo de uma culpa insidiosa, na minha memória. Na verdade, devo reconhecê-lo, Bresson é um cineasta que levei tempo a compreender em todo o seu esplendor narrativo. Sem dúvida por isso, além de me exigir o máximo de concisão na abordagem da sua obra, atrevo-me a supor que a inteligência moral do seu trabalho pode interessar qualquer analista — incluindo um comentador televisivo de futebol. Daí a minha pergunta: como é que cada um desses comentadores vê, descreve e interpreta um filme como O Dinheiro?
Vale a pena lembrar que, tendo como ponto de partida um conto de Tolstoi, Bresson conta uma história de um tempo (o da própria produção do filme) em que já há máquinas multibanco. Dito de outro modo: estamos perante um verdadeiro conto moral que não se dilui numa qualquer nostalgia “literária”, antes remetendo para o presente em que o espectador descobre o filme.
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Ludwig Wittgenstein |
A moral é linear e, de facto, trágica — tragicamente actual. A saber: o dinheiro, ou melhor, a sua circulação arrasta uma avalanche de ambiguidades em que, no limite, a dimensão humana tende para o vazio, transformando-se em “coisa” descartável. Ora, no pequeno ecrã, o espaço de reflexão sobre o futebol consegue a proeza bizarra (pueril, a meu ver) de tratar o dinheiro como matéria natural, quer dizer, produto de uma natureza que existe como entidade que não suscita qualquer dúvida ou perturbação — discutem-se os milhões que custa o passe de um jogador como se o valor monetário do futebol fosse o produto de uma sociedade em que a distribuição de recursos (financeiros, precisamente) fosse a coisa mais pacífica do mundo.
Já nem espero que algum dos comentadores páre para perguntar se faz sentido um país como Portugal envolver-se (financeiramente) na organização de um Mundial de Futebol — aliás, o seu silêncio ecoa a indiferença da classe política em relação ao assunto. Acontece que as palavras com que se descrevem (?) os circuitos dos dinheiros do futebol reforçam a noção de que o próprio futebol pertence a uma cultura autónoma em que o dinheiro existe como bênção transcendental e, nessa medida, inquestionável.
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Gustave Flaubert |
Há outra maneira de lidar com tudo isto. Consiste em ter a serenidade de reconhecer que a cultura dominante na sociedade portuguesa tem o futebol como matéria central. Há uma tradição cínica que continua a tentar atribuir aos que lidam com as artes (exemplo: os críticos de cinema) todas as responsabilidades pela definição e propagação dos valores culturais da sociedade. De facto, da percepção do dinheiro às componentes específicas das relações humanas, poucos possuem o poder — e a omnipresença — dos analistas do futebol. Vivem, por isso, condenados pela maldição que Flaubert identificava nas vidas de Bouvard e Pécuchet: “E ao ter mais ideias tiveram mais sofrimentos”.