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Apocalipse nos Trópicos: Brasília como símbolo nuclear de todo um país |
Petra Costa acompanhou o confronto entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, desembocando nas eleições presidenciais no Brasil, em 2022: o resultado chama-se Apocalipse nos Trópicos e é um caso exemplar de investigação cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias.
A avalanche de documentários que podemos encontrar (nas plataformas e também nas salas) não significa, por si só, que o género esteja num período radioso de criatividade. Porquê? Sobretudo porque muitos dos títulos que vão surgindo são derivações esquemáticas de matrizes televisivas. Sublinhemos, por isso, uma excepção que, pelo didactismo de investigação e também pela elaborada montagem, merece destaque: Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, há dias lançado na Netflix, é um objecto capaz de nos ajudar a compreender um pouco melhor o momento presente do Brasil e, sobretudo, a sua conjuntura política.
Na trajectória da realizadora brasileira (nascida em Belo Horizonte, em 1984), este não é um trabalho isolado, funcionando mesmo como um “prolongamento” do seu título anterior, The Edge of Democracy (2019), também com chancela Netflix e nomeado para o Oscar de melhor documentário. Nesse filme, tratava-se de analisar as convulsões políticas e sociais que marcaram o primeiro mandato de Lula da Silva (2003-2011), a sucessão e, por fim, o “impeachment” de Dilma Rouseff (2016). Agora, Apocalipse nos Trópicos desemboca no confronto eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, com a eleição do primeiro para um novo mandato, iniciado a 1 de janeiro de 2023.
Foi um confronto entre duas personalidades com características muito próprias e, escusado será sublinhá-lo, com agendas políticas bem diferentes. Ora, precisamente ao contrário do maniqueísmo por vezes favorecido por algumas matrizes televisivas, Petra Costa está longe de reduzir a questão a uma "luta livre” de dois homens que tudo distingue. Assumindo o documentário como uma investigação muito pessoal, a realizadora propõe-se reconhecer e desmontar o peso do movimento evangélico nas práticas políticas de Bolsonaro e, em boa verdade, nas dinâmicas da sociedade brasileira.
O resultado tem qualquer coisa de dantesco e perturbante. Desde a primeira sequência, Apocalipse nos Trópicos é pontuado (e, em certa medida, assombrado) pela utopia de uma sociedade espelhada na construção da cidade de Brasília, símbolo de uma paz alicerçada na harmonia dos poderes, definidos e exercidos à margem das crenças religiosas.
De forma pedagógica, assistimos à transformação de um movimento religioso, liderado pelo tele-evangelista Silas Malafaia, numa força política (até à invasão do Congresso por apoiantes de Bolsonaro a 8 de janeiro de 2023). A complexidade de tudo o que está em jogo ecoa nas palavras de Lula da Silva, em diálogo com Petra Costa: “Eu tenho uma tese de que o que levou o socialismo ao fracasso foi a negação da religião”. Ou ainda: “Pode ser que algum comunista ortodoxo não aceite a minha tese, mas você não pode negar os valores em que as pessoas acreditam.”