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Marianne Jean-Baptiste: personagem enigmática, actriz de génio |
Autor fundamental no interior das tendências realistas do cinema britânico, Mike Leigh está de volta com Verdades Difíceis, um filme admirável sobre as convulsões de um universo familiar, centrado numa notável composição de Marianne Jean-Baptiste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho).
Vivemos sob o jugo cultural das telenovelas. Temos sido (des)ensinados a considerar que o realismo seria aquele espontaneísmo mecânico dos actores, invariavelmente iluminados por uma luz de noticiário televisivo, e também aquela montagem mecânica das imagens... Que dizer, então, a propósito da estreia do prodigioso Verdades Difíceis, do inglês Mike Leigh? Apenas o mais simples: o fulgor do realismo britânico mantém-se intacto.
Poderá discutir-se a pertinência da palavra “realismo” a propósito da obra de Mike Leigh, ele que terá tido os seus períodos de maior projecção graças a Segredos e Mentiras (Palma de Ouro, em Cannes, no ano de 1996) e Vera Drake (Leão de Ouro de Veneza, em 2004) — isto sem esquecer títulos como A Vida É Doce (1990), Nu (1993) e Raparigas de Sucesso (1997) que podem ser vistos num mini-ciclo proposto em Lisboa pelo cinema Nimas, a partir de amanhã, em paralelo com o lançamento de Verdades Difíceis.
Acontece que a marca realista surge mais frequentemente associada à obra de outro brilhante autor inglês, Ken Loach, sem dúvida por causa das conotações imediatamente políticas das suas histórias (por exemplo: Eu, Daniel Blake, 2016). Ora, Mike Leigh não é nem “mais” nem “menos” político do que Loach, mas é-o, sem dúvida, de modo diferente.
Atentemos na personagem central de Verdades Difíceis, Pansy, interpretada pela genial Marianne Jean-Baptiste (uma das actrizes principais de Segredos e Mentiras). Ela é uma mulher negra de uma família em tudo e por tudo marcada pelo seu comportamento pouco caloroso: primeiro em permanente conflito com o marido, o filho e praticamente toda a gente com que se cruza; depois, a pouco e pouco, enclausurada numa pose cada vez mais depressiva... O realismo começa no tratamento dramático das infinitas nuances do seu comportamento, não na cor da sua pele. E se tal elemento não é estranho à compreensão do seu lugar social, o certo é que Leigh não fez um filme para satisfazer os esquematismos moralistas dos arautos do politicamente correcto — Pansy é negra... porque é negra, não para servir de “símbolo” do que quer que seja.
Pansy é alguém que nunca “encaixa” num modelo dramático estável e definitivo, seja ele familiar ou social. Mesmo na relação com a sua irmã, Chantelle (Michele Austin), sem dúvida a pessoa de quem ela, apesar de tudo, se sente mais próxima, Pansy é sempre um enigma — para os outros e também, por certo, para si própria.
Aquilo que Mike Leigh expõe é esse desconhecimento que faz com que haja um ser todos os instantes a combater uma guerra sem inimigo definido, guerra que se renova no interior do seu próprio silêncio. Daí a irredutibilidade de Pansy: raras vezes vimos representada uma tão extrema agressividade afectiva contra os outros humanos, sem que isso nos impeça de reconhecer o sofrimento atroz de todos os momentos da sua existência.
Tão longe, tão perto
Tudo isto acontece num cinema de tocante proximidade. É uma proximidade emocional, sem dúvida, mas também eminentemente física, ou não fosse Mike Leigh um talentoso artífice dos grandes planos. No seu cinema, o grande plano não é, como nas novelas, apenas a imagem mais “próxima” de um trabalho sem escala nem sentido do espaço: o grande plano existe, isso sim, como apoteose de uma visão em que, paradoxalmente ou não, mesmo nos planos mais afastados, vemos sempre, e podemos sentir, a singular vibração de cada corpo.
Enfim, para não nos ficarmos pelo cinema como bandeira seja do que for, lembremos que a carreira de Mike Leigh tem as suas raízes no mundo do teatro. E que o seu realismo, alheio a qualquer ilusão pueril de espontaneidade, não renega as virtudes da teatralidade. Registe-se, por isso, o calendário de Verdades Difíceis: a rodagem durou seis semanas, mas antes houve 14 semanas de ensaios.