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Johannes Hegemann e Liv Lisa Fries: memórias alemãs de 1942 |
As memórias da Segunda Guerra Mundial surgem em De Hilde, com Amor através de um par amoroso envolvido na resistência ao nazismo. com assinatura de Andreas Dresen, esta é uma narrativa diferente do tradicional “filme-de-guerra” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho).
Será que faz sentido abordar a Alemanha nazi através de uma narrativa melodramática? A pergunta é, obviamente, dispensável, quanto mais não seja porque a Segunda Guerra Mundial tem sido matéria narrativa dos géneros mais diversos, do musical segundo Otto Preminger (Carmen Jones, 1954) até à comédia do absurdo reinventada por Jerry Lewis (Onde Fica a Guerra?, 1970). Seja como for, não é todos os dias que deparamos com um filme sobre a repressão nazi como De Hilde, com Amor, produção alemã com assinatura de Andreas Dresen, tendo como base um argumento de Laila Stieler.
Melodrama, entenda-se, nada tem que ver com o sentido pejorativo com que a ideologia “telenovelesca” passou a citar aquele que é, para todos os efeitos, um dos géneros fulcrais da história do cinema — de Charles Chaplin a Paul Thomas Anderson. A sensibilidade melodramática interessa-se pelos recantos da intimidade humana, celebrando a irredutibilidade dos seus sentimentos e emoções.
Embora vivido em cenários alemães de 1942, De Hilde, Com Amor escapa às regras correntes do “filme de guerra” como retrato dos respectivos confrontos terrestres, aéreos ou marítimos. Estamos mesmo perante uma história centrada em cidadãos comuns alemães que, no começo, vivem as perseguições aos judeus como algo que permanece exterior à (aparente) estabilidade do seu mundo.
No seu centro está Hilde (Liv Lisa Fries), a jovem enfermeira que, como o título sugere, irá escrever ao seu bem-amado Hans (Johannes Hegemann), quando este é preso pela Gestapo. Acontece que Hans integra um foco de resistência que, através de um telégrafo, comunica com a União Soviética (a história inspira-se no grupo que ficou conhecido como “Orquestra Vermelha”); também envolvida nas actividades clandestinas de Hans, Hilde será acusada de traição e presa quando está grávida...
O filme segue, assim, uma história romântica brutalmente interrompida pela prisão dos protagonistas. Com uma componente social que está longe de ser secundária: Hilde e Hans não são personagens que se esgotem num qualquer padrão de “heróis políticos”, já que a acção surge sempre contaminada pela vulnerabilidade sua relação amorosa. O filme desenvolve-se através de uma estrutura que, embora tradicional, sabe criar uma fluidez dramática plena de contrastes.
Dito de outro modo: De Hilde, com Amor organiza-se através do recurso regular a “flashbacks” tanto mais sugestivos quanto não surgem por ordem cronológica, antes funcionam como ecos díspares e distantes do presente.
O envolvimento emocional da realização de Dresen (e também do hábil argumento de Stieler) evita qualquer heroicização fácil dos protagonistas. Numa cena emblemática do género melodramático (a conversa noturna junto a uma fogueira), Hilde fará mesmo um pequeno inventário de tudo aquilo de que tem medo: “De aranhas, de escaravelhos, dos nazis, do meu dentista, do amor.”
É provável que, face a De Hilde, com Amor, alguns espectadores evoquem a memória próxima de A Zona de Interesse, a realização de Jonathan Glazer que, em representação do Reino Unido, arrebatou o Óscar de melhor filme internacional de 2023 (depois de ter sido distinguido com o Grande Prémio do Festival de Cannes). É verdade que o trabalho de Glazer possui uma invulgar vibração trágica que o coloca entre os mais notáveis filmes deste século XXI sobre o nazismo, mas não é menos verdade que Dresen consegue também revisitar a Alemanha de 1942 sem ceder a esquematismos dramáticos ou ideológicos.
Daí que se justifique um destaque especial para a direção fotográfica assinada por Judith Kaufmann. A paleta cromática de De Hilde, com Amor evoca com subtileza as imagens da época, sem ceder a qualquer decorativismo “kitsch” e, sobretudo, sabendo utilizar a mais sedutora (e também mais complexa) fonte de iluminação: a luz natural.