segunda-feira, junho 23, 2025

Um suicídio cultural
[a propósito do filme Portugueses]

A representação cinematográfica (e não só) do 25 de Abril foi sendo reduzida a um catecismo de lugares-comuns — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 junho).

Estreado esta semana [5 junho], Portugueses, de Vicente Alves do Ó, é um filme que se deixa resumir na breve frase com que é apresentado no site da Cinemundo, a sua distribuidora: “Somos todos... Portugueses.” Assim mesmo: com as reticências a suspender a frase na expectativa de uma revelação e a identificação da nossa nacionalidade com maiúscula. Estamos perante um trabalho que nasce de uma sincera e honesta vontade de celebrar a herança do 25 de Abril, partilhando-a com os espectadores. Acontece que sinceridade e honestidade, por mais respeito que possam merecer, não bastam para pensar o cinema enquanto linguagem e cruzamento de linguagens.
O filme parte de um axioma moral em que se confundem e, supostamente, se harmonizam os factos da história e a transcendência da mitologia. O dispositivo dramático — uma série de episódios antes e durante o 25 de Abril "comentados" por canções — vai-se esgotando em estereótipos de uma dramaturgia esquemática, sustentada pelo formalismo da “oposição” entre o preto e branco das memórias e as cores das canções. Com algumas ironias bizarras, como seja a associação da burguesia do Estado Novo ao Conquistador dos Da Vinci (canção que representou Portugal na Eurovisão, em 1989). Enfim, Portugueses revela a ambição de uma parábola política — falemos, então, de política.
Que estereótipos? Não esquecendo as formas de violência postas em prática pelo Estado Novo, não parece muito produtivo tratar os respectivos tempos como se no país só houvesse dois tipos de personagens: militantes do Partido Comunista e mulheres marginalizadas (espancadas as do povo, estúpidas as da burguesia). Ninguém contesta que a acção do PC foi fulcral para a queda da ditadura salazarista/marcelista, nem que a igualdade entre homens e mulheres estava longe de ser um princípio unificador da sociedade. O que se discute é algo que a esquerda, principal indutora deste modelo de representações, já não pensa. Pensar o quê? A pueril transformação narrativa de tais referências num catecismo bolorento que promove o tratamento da ditadura como uma encarnação abstracta do mal. Como se essa fosse uma forma inteligente, politicamente produtiva, de pensar o passado — e viver no presente.
São questões que excedem o filme: Portugueses não passa de um pormenor benigno de uma conjuntura muito mais geral. Será preciso falar de um aparato ideológico há muito dominante no espaço televisivo português, reforçado ao longo de 2024, ano em que se assinalaram os 50 anos do 25 de Abril: há todo um discurso mediático, panfletário e artístico, enraizado num certo imaginário de esquerda (com a bem disposta chancela da direita), que se organiza a partir de duas leis narrativas. Primeiro, encena-se o 25 de Abril como uma barreira mágica, de verdadeiro conto de fadas, que separa a ditadura da revelação religiosa da democracia; depois, a palavra “liberdade” é aplicada como um instrumento, também ele mágico, que nos permite usufruir dos valores democráticos, abstraindo da história a que pertencemos.
Vivemos e celebramos a democracia sem sair deste infantilismo ideológico. A esquerda, protagonista de tais atribulações narrativas, continua a trabalhar para o seu suicídio cultural. Porquê? Porque à esquerda falta a coragem de questionar o modo como a política foi sendo parasitada pelas lógicas mais especulativas e fulanizadas do espaço televisivo. Adia-se, assim, o enfrentamento da cultura como um complexo movimento de valores, actos e discursos que não se esgota na respectiva percentagem no Orçamento Geral do Estado (ainda que os políticos de esquerda pudessem prestar alguma atenção ao assunto).
Como é que a esquerda se pode repensar, ousando lidar com tudo isso? Não sei, mas tenho dúvidas que a resposta pertença aos “conselheiros de imagem” que por aí proliferam. Bastaria, então, maquilhar a pose televisiva de Pedro Nuno Santos? Os resultados são eloquentes: uma cruel sensação de falsidade de que o próprio foi a primeira e desamparada vítima.
Sem negar as diferenças esquerda/direita, o 25 de Abril doou-nos a hipótese de reconhecer que essa formulação (“esquerda/direita”) está longe de esgotar a complexidade do mundo — vale a pena, a propósito, reler alguns textos escritos por Eduardo Prado Coelho há meio século, quando ele lembrava o risco e a alegria de uma linguagem em que “se dissolvam os mitos que fomos construindo”.