sábado, março 15, 2025

Redescobrindo o prazer do suspense

Veerle Baetens em Noite em Fim: explorando a herança do suspense

Em língua francesa, eis uma bela estreia na realização: Delphine Girard, realizadora belga nascida no Canadá, explora as regras clássicas do suspense em Noite sem Fim, um filme protagonizado por duas mulheres unidas por um telefonema perturbante, recheado de perguntas e enigmas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 março).

Perante o lançamento de Noite sem Fim, uma sólida e competente longa-metragem de estreia da cineasta belga Delphine Girard (nascida no Canadá, em 1990), apetece dizer que o cinema de língua francesa se porta bem. Isto porque esta semana chegam também às salas portuguesas dois filmes muito interessantes provenientes de França: O Romance de Jim e Brincar com o Fogo.
Noite sem Fim é uma boa solução para o título português, já que a tradução literal do original, Quitter la Nuit, corria o risco de parecer indecifrável. Seja como for, vale a pena perguntar o que significa esse “sair da noite”. Ou se é possível, de facto, sair dessa noite vivida pelas personagens principais, Aly e Anna, interpretadas por duas brilhantes actrizes: Selma Alaoui e Veerle Baetens — vimos a primeira em O Miúdo da Bicicleta (2011), de Jean-Pierre e Luc Dardenne, enquanto a segunda integrava o elenco de Ciclo Interrompido, de Felix van Groeningen, nomeado para o Oscar de melhor filme internacional de 2012, em representação da Bélgica.


Acompanhamos a noite de Aly e Anna no primeiro quarto de hora do filme, por certo uma das melhores cenas de suspense que descobrimos em tempos recentes. Desde logo, recordando-nos que o suspense nada tem que ver com a banalidade pueril do susto (o monstro que sai do armário quando alguém abre uma das suas portas...), mas sim, literalmente, com algo que permanece em estado de suspensão. Primeiro: o que está, realmente, a acontecer? Segundo: o que pode, tragicamente ou não, acontecer?
É uma velha arte narrativa que, como bem sabemos, foi sistematizada por Alfred Hitchcock (1899-1980) na sua máxima sofisticação. Trata-se de colocar em cena personagens que vivem na iminência de algum perigo muito sensível, enraizado numa diferença de conhecimentos entre o que essas personagens sabem e tudo aquilo que o espectador sabe (ou julga saber...).
Neste caso, Aly vai num carro com um homem, a certa altura decidindo telefonar à irmã para lhe perguntar se, naquela noite, pode tomar conta da sua filha. Na verdade, está a ligar para a polícia, sendo atendida por Anna. De início, Anna julga que se trata de um telefonema perdido ou uma brincadeira de mau gosto, mas a certa altura começa a perceber que a situação de Aly está longe de ser confortável, procurando que ela lhe responda por palavras simples (“sim”, “não”) ou pequenas frases codificadas (“sim, lembro-me...”), tentando compreender se ela está a ser raptada ou foi alvo de violência. Invulgar é o facto dessa conversa inicial, para lá de conduzir à investigação do comportamento do homem que acompanhava Aly, se transformar numa espécie de fantasma que une as duas mulheres: o suspense prolonga-se no inquérito policial, mas também na possibilidade de Aly e Anna se encontrarem.
Somos, talvez, levados a estabelecer algum paralelismo com a produção dinamarquesa O Culpado (2018), de Gustav Möller, e também com o respectivo remake americano, com o mesmo título, realizado três anos mais tarde por Antoine Fuqua. Também aí havia um elemento dos serviços policiais (interpretado primeiro por Jacob Cedergren, depois por Jake Gyllenhaal) que recebia uma chamada carregada de perturbação, feita por uma mulher raptada...
Seja como for, o dispositivo dramático de Noite sem Fim, ainda que conduzido pela tradicional lógica policial (que aconteceu, quando, com quem?...), envolve essa sensação de permanente diálogo de Aly e Anna, mesmo antes de se encontrarem, ou poderem encontrar. Por vezes, a utilização de algumas cenas em flashback não será a maneira mais eficaz de gerir a tensão, mas é um facto que Delphine Girard consegue instalar essa ideia, perturbante e redentora, segundo a qual a história de cada um se desenvolve também através da história de outro (ou outros) — o prazer do suspense nasce, assim, de uma derivação perversa do destino.