domingo, fevereiro 23, 2025

Steven Soderbergh
— o cinema na companhia dos fantasmas

Callina Liang a olhar para a câmara: quem anda aí?...

Desde os tempos heróicos de Sexo, Mentiras e Video (1989), Steven Soderbergh é um hábil criador de filmes de pequena produção e grande energia criativa: o mais recente, A Presença, convoca alguns clichés do cinema terror para, por fim, propor uma experiência genuinamente criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 fevereiro).

Nos cânones da arte cinematográfica, deparamos muitas vezes com uma sugestiva “explicação” das suas raízes. Assim, liderando os primitivos, os irmãos Lumière ofereceram aos filmes o gosto pela contemplação do mundo à nossa volta, isto é, o realismo; por seu lado, Georges Méliès, ilusionista das imagens e, de facto, inventor dos primeiros efeitos especiais, contrapôs a celebração de alternativas mais ou menos fantasistas. Em boa verdade, é possível circular entre uma coisa e outra, sem ter de escolher uma contra a outra — o novo filme de Steven Soderbergh, A Presença, aí está para ilustrar as delícias dessa dinâmica.
O filme evoca de imediato o cliché mais gasto do cinema de terror das últimas décadas: uma família instala-se numa nova casa dos subúrbios e, claro, há um fantasma a pairar sobre as acções dos humanos... Enfim, mesmo evitando revelar peripécias para lá daquilo que é jornalisticamente razoável, digamos que o cliché começa a ser desfeito a partir da primeira imagem do filme — ao fim de um minuto, antes mesmo de começarmos a conhecer as atribulações internas daquela família, intuímos que o fantasma se está a revelar a cada um de nós, espectadores.


Como? Acontece que o fantasma é... a câmara! Através de um subtil tratamento de enquadramentos e movimentos, Soderbergh nem sequer necessita de “explicar” o que quer que seja. Estamos perante qualquer coisa de sensorial. Acompanhamos o dia a dia daquela família através do olhar da “presença” que o título anuncia e começamos a pressentir duas ou três coisas que estão longe de ser secundárias: a crise que existe entre a mãe, Rebekah (Lucy Liu), e o pai, Chris (Chris Sullivan), incluindo a pouca transparência dos negócios em que ela está envolvida; a arrogância do irmão mais velho, Tyler (Eddy Maday); a fragilidade da irmã, Chloe (Callina Liang), assombrada pelas memórias de uma amiga que morreu.
Tudo isto envolve uma elaborada teia de “suspense”. Não à maneira das vulgaridades do terror que enxameia o mercado, com monstros mais ou menos disformes a berrar na banda sonora. Nada disso: em primeiro lugar, porque, "coincidindo” com o olhar da própria câmara, o monstro é informe, quer dizer, especificamente cinematográfico; depois, porque retomando a lição do velho Hitchcock, Soderbergh sabe que o “suspense” não é a surpresa pela surpresa, nem a vulgaridade do susto, mas o pressentimento — algo de terrível pode sempre acontecer na imagem seguinte.
Há, assim, uma genuína poética do factor humano. Soderbergh encena o quotidiano familiar na sua mais cruel ilusão de harmonia, afinal carente de alguma energia (ou honestidade) capaz de lidar com os fantasmas que o habitam. No limite, Chloe pode mesmo olhar para a câmara à procura de uma verdade sobre-humana...

Cinema minimalista

A Presença aí está como um belo contraponto aos vícios de produção que têm pontuado muitas opções dos estúdios clássicos de Hollywood. E não apenas através da sua sofisticação criativa, também mostrando que é possível gastar infinitamente menos dinheiro e fazer grande cinema: o orçamento de 2 milhões de dólares (pouco mais de 1,9 milhões de euros) é mesmo ridiculamente baixo, até para o panorama europeu de produção.
Soderbergh, convém recordar, é um ágil criador das mais contrastadas matrizes de produção. Afinal de contas, ele é também o autor da notável série de aventuras iniciada com Ocean’s Eleven (2001), protagonizado por George Clooney e Brad Pitt. O certo é que, desde a sua estreia com Sexo, Mentiras e Video (Palma de Ouro de Cannes/1989), Soderbergh tem sabido montar os mais diversos projectos minimalistas. Lembremos apenas o exemplo de Distúrbio (2018), com Claire Foy, outra derivação brilhante a partir das regras do terror — com ele, as regras viram excepções.