Sob o signo de Joker |
A composição de Lady Gaga como Harley Quinn, contracenando com Joaquin Phoenix, em Joker: Loucura a Dois, é a prova muito real de um talento que passa pelas canções, mas não se esgota na música: ela é também uma verdadeira estrela de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro).
O novo álbum de Lady Gaga, lançado a 27 de setembro, é um belo reflexo das singularidades do seu imenso talento. Chama-se Harlequin e, além de dois temas originais, apresenta como matéria principal as canções da banda sonora de Joker: Loucura a Dois. Não exactamente tal como se ouvem no filme, mas trabalhadas em estúdio para recriar algumas memórias clássicas do cancioneiro made in USA.
No seu alinhamento encontramos, por exemplo, Good Morning, tema interpretado por Judy Garland e Mickey Rooney em Babes in Arms/De Braço Dado (1939), de Busby Berkeley, porventura mais conhecido pela sua utilização em Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen. Ou ainda That’s Entertainment, verdadeiro hino do espectáculo segundo Hollywood, proveniente de The Band Wagon/A Roda da Fortuna (1953), de Vincente Minnelli — agora, na cena da prisão em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) e os outros reclusos assistem a um filme através de um velho projector de 16mm, esse filme é, justamente, The Band Wagon, na cena em que Fred Astaire, Jack Buchanan, Nanette Fabray e Oscar Levant cantam That’s Entertainment.
Quer isto dizer que Harlequin reafirma a capacidade de Lady Gaga revisitar e reinventar temas viscerais do imaginário americano do espectáculo, prolongando a lógica criativa de Cheek to Cheek (2014) e Love for Sale (2021), os dois belíssimos álbuns que gravou com Tony Bennett. Tal princípio artístico duplica-se na notável composição de Harley Quinn, muito para lá de qualquer função de mero “apoio” (“supporting actress”, diz o cânone) ao Joker que Phoenix refaz com inexcedível brilhantismo.
Lady Gaga distingue-se pelo esplendor das verdadeiras estrelas. O filme que a consagrou — Assim Nasce uma Estrela (2018), de e com Bradley Cooper — tem mesmo um título que se adequa tanto à sua personagem feminina como à respectiva intérprete. Aliás, depois desse filme e antes do novo Joker, vimo-la numa realização de Ridley Scott, Casa Gucci (2021), em que a sua composição, longe do registo melodramático de Assim Nasce uma Estrela, a revelava num sofisticado modelo de farsa, algures entre a alegria cómica e o artifício operático.
Semelhante versatilidade está também bem expressa na sua já muito considerável colecção de telediscos, recriando referências em que se cruzam heranças de cinema, televisão e banda desenhada. Lembremos o exemplo exuberante de Telephone, canção do álbum The Fame Monster (2009) interpretada em dueto com Beyoncé [video]. O respectivo teledisco possui a energia formal (e as cores!) de um objecto eminentemente pop encenado com o misto de provocação e irrisão que é a “assinatura” do seu realizador, o sueco Jonas Akerlund. Tendo em conta que a videografia de Akerlund inclui proezas como Ray of Light (1998), de Madonna, o menos que se pode dizer é que Lady Gaga conhece bem a sua árvore genealógica.