quinta-feira, agosto 22, 2024

Gena Rowlands, in memoriam

Gena Rowlands em Noite de Estreia: mistérios do teatro, esplendor do cinema

Actriz com uma carreira de mais de seis décadas, presença nuclear na obra de John Cassavetes, seu marido, Gena Rowlands deixa o legado multifacetado de muitas e fascinantes personagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 agosto), com o título 'Morreu a actriz de todos os mistérios'.

Nome grande do firmamento de Hollywood, mulher e musa de John Cassavetes, Gena Rowlands morreu no dia 14 de agosto na sua casa de Indian Wells, na Califórnia. Em finais do mês de junho, o filho Nick Cassavetes informara os meios de comunicação da frágil condição de saúde da mãe, há cinco anos atingida pela doença de Alzheimer — contava 94 anos.
É provável que os espectadores mais jovens desconheçam a sua presença decisiva na obra de John Cassavetes — incluindo Faces/Rostos (1968), símbolo da “nova vaga” de Hollywood —, identificando-a sobretudo com The Notebook/O Diário da Nossa Paixão (2004), um dos filmes em que foi dirigida, precisamente, por Nick Cassavetes, tendo como base um “best-seller” de Nicholas Sparks. Alguns anos mais tarde, surgiria também no elenco de Broken English/Uma Americana em Paris (2007), longa-metragem de estreia da sua filha Zoe Cassavetes.
Ainda que as suas mais notáveis composições não se esgotem nos filmes do marido — lembremos Uma Outra Mulher (1988), de Woody Allen, contracenando com Mia Farrow e Gene Hackman —, foi com John Cassavetes que Gena Rowlands acedeu à nobreza artística de Hollywood. O facto parece contraditório, uma vez que Cassavetes é muito justamente associado a um conceito de “independência” no interior do sistema, mas é com o seu filme A Child Is Waiting/Uma Criança à Espera (1963), produzido por uma “major” de Hollywood (United Artists), que ela começa a revelar um invulgar talento — recorde-se que esse subtil retrato de um hospital para doentes mentais foi o penúltimo filme de Judy Garland.


Obteve duas nomeações para o Oscar de melhor actriz, em ambos os casos dirigida pelo marido: Uma Mulher sob Influência (1974), centrado numa personagem cuja doença mental vai decompondo todas as suas relações sociais, e Gloria (1980), reconvertendo, no feminino, os modelos de personagens masculinas do cinema “noir” da década de 40. O primeiro, cujo argumento foi sugerido pela própria Gena Rowlands, ficou como um dos projectos mais pessoais de John Cassavetes, produzido com o seu próprio dinheiro e o apoio financeiro de vários amigos (incluindo Peter Falk, intérprete da personagem do marido); o segundo tem chancela da Columbia, outro grande estúdio de Hollywood — logo a seguir, Gena Rowlands e John Cassavetes participariam, apenas como actores, numa versão moderna da Tempestade (1982), de Shakespeare, realizada por Paul Mazursky. Quanto aos Oscars, receberia uma estatueta honorária em 2016.
Vimo-la também em títulos tão diferentes como Tony Rome Investiga (1967), policial de Gordon Douglas protagonizado por Frank Sinatra, Luz do Dia (1987), realização de Paul Schrader com Michael J. Fox no universo de uma banda rock, Noite na Terra (1991), filme de “sketches” assinado por Jim Jarmusch, ou A Bíblia de Neon (1995), admirável melodrama do inglês Terence Davies.

Uma herança plural

Nascida em Madison, Wisconsin, a 19 de junho de 1930, Gena Rowlands foi, como muitos intérpretes da sua geração, uma actriz que deu os primeiros passos em meados da década de 50, num ziguezague entre os palcos e a televisão. Na Broadway, estreou-se em The Seven Year Itch, a peça de George Axelrod que viria a ser celebrizada por Marilyn Monroe na versão filmada por Billy Wilder em 1955 (título português: O Pecado Mora ao Lado). Por essa altura, participou em séries como The Way of the World, Johnny Stacatto (com o marido no papel central) ou Alfred Hitchcock Apresenta.
Dois dos filmes finais de e com John Cassavetes podem resumir o seu legado: Noite de Estreia (1977), vivido nos bastidores do teatro, e Amantes (1984), sobre as “correntes do amor” referidas no título original (Love Streams). Se o primeiro é um verdadeiro requiem sobre o grau de exposição, delírio e sofrimento que o trabalho de palco pode implicar, o segundo tende a ser classificado, erroneamente, como um espelho autobiográfico do casal actriz/realizador — na verdade, Cassavetes e Rowlands interpretam dois irmãos que tentam encontrar algum tipo de equilíbrio, porventura de redenção, depois da decomposição das suas vidas conjugais.
Da solidão da mãe de Uma Criança à Espera, tentando lidar com os problemas mentais do filho, até à desamparada irmã de Amantes, Gena Rowlands foi uma actriz capaz de expor os mistérios do comportamento humano, sem nunca se deixar encerrar em facilidades “novelescas” ou estereótipos de género — a sua herança tem tanto de excelência artística como de comovente emoção.

>>> Obituário na NPR.
>>> Oscar honorário, 8 novembro 2014.