quarta-feira, agosto 14, 2024

A televisão, a política, a sua ilusão e a cultura dela

Dustin Hoffman e Robert De Niro em Manobras na Casa Branca (1997): o que é fazer política?

Como vemos a política nos nossos ecrãs caseiros? Ou ainda: será que a política só existe através de ecrãs? Perguntas dos nossos dias, temas recalcados por quase todos, personagens da política, personagens da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 julho).

David Mamet
Eis um belo exemplo do modo como a actualidade pode ter tanto de factual como de perverso — desta vez a partir da revisão do filme Manobras na Casa Branca, de Barry Levinson, fabulosa comédia política que tem como base um dos mais brilhantes argumentos escritos por David Mamet (contando, neste caso, com o contributo de Hilary Henkin). Chama-se no original Wag the Dog e, além dos seus méritos cinematográficos, adquiriu um curioso lugar simbólico na política dos EUA.
Isto porque as peripécias do filme e a cena política americana estabeleceram um bizarro curto-circuito. Assim, Wag the Dog chegou às salas no Natal de 1997, contando a história rocambolesca de um Presidente dos EUA (fictício) que, em vésperas de uma nova eleição, coloca os seus conselheiros perante um problema bicudo: ele mantém uma relação secreta com uma mulher e a eventual revelação pública do caso será fatal para os objectivos da campanha em curso. Ora, pouco mais de duas semanas depois da estreia, a 17 de janeiro de 1998, ainda Wag the Dog estava nas salas de todo o país, era revelado o chamado escândalo Monica Lewinsky: tal como o Presidente do filme, Bill Clinton surgia como protagonista de um affaire que se iria transformar numa verdadeira comédia de costumes…
Barry Levinson
Entenda-se: independentemente do “antes” e “depois” do filme, a colaboração Mamet/Levinson não pertence à pornografia tablóide. É mesmo uma das mais elaboradas narrativas que já se fizeram sobre algumas práticas da política dos nossos tempos, entendida e encenada como uma telenovela sem fim, moralista até à náusea. Personagens decisivas serão o conselheiro mediático (spin doctor, segundo a gíria) convocado para apagar o fogo do escândalo e um produtor de Hollywood contratado para, literalmente, criar uma ficção que possa distrair os eleitores americanos das atribulações privadas do seu Presidente — são interpretados, respectivamente, pelos magníficos Robert De Niro e Dustin Hoffman.
Que acontece, então? Pois bem, numa angustiada reunião na Casa Branca, um dos cérebros da pequeno tribo montada para resolver a crise apresenta a solução mais eficaz: “Declaramos guerra à Albânia…” Como? Algumas vozes ainda com alguma sensatez lembram: “Mas não estamos em guerra com a Albânia!” Pois não — basta encená-la… E começa a produção de uma guerra fabricada com ecrãs virtuais.
Seria simplista reduzir o filme à sua “mensagem” mais linear: a televisão mente ou, pelo menos, em algumas situações, pode mentir. Há mesmo nele um sentido visionário que importa referir e revalorizar. Assim, com o passar dos anos e a evolução (que, não poucas vezes, é uma involução) das práticas políticas — nos EUA e em muitas democracias —, a televisão deixou de ser entendida e, sobretudo, praticada como um veículo de informação ou exposição das dinâmicas políticas. No limite, a televisão passou a ser vivida como a própria política. Quanto tentam “encurralar” um adversário, os políticos mais medíocres já não discutem ideias (as suas, se as tiverem, ou as dos outros), limitando-se a invectivar esse mesmo adversário: “Ele tem de ir à televisão explicar-se!”
Instala-se, assim, uma ilusão comunicacional que, em boa verdade, deixou de existir como banal fenómeno de percepção ou pensamento: passou a definir, justificar e fortalecer uma cultura mediática que se alimenta da proliferação das mesmas imagens formatadas no maior número possível de ecrãs. O que, bem entendido, gera um efeito “boomerang” que, perante a inconsciência de muitos, penaliza todos os actores da cena política: se cada um deles não existir em algum ecrã… então é porque não existe!
Rezam as crónicas que Wag the Dog, o título original — cuja tradução literal poderá ser “abanar o cão” ou “abanem o cão” —, é uma expressão que pertence ao imaginário político americano desde meados do século XIX. A sua significação está esclarecida na legenda que abre o filme: “Porque é que o cão abana o rabo? Porque o cão é mais esperto que o seu rabo. Se o rabo fosse mais esperto, abanaria o cão.”
Toda a televisão é assim? Claro que não, mas há um sistema cognitivo que prolifera através de algumas formas ou formatos televisivos em que “abanar o cão” passou a ser o patético resto de linguagem que ainda se atreve a sugerir o desejo de algum realismo. O que, convenhamos, ajuda a compreender a saturação emocional de muitos espectadores — emocional e política, convém acrescentar.

>>> Trailer original de Wag the Dog.