sábado, julho 20, 2024

Salman Rushdie
— o olho direito da Lua

Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès: a memória que persiste

Através de palavras concisas, Salman Rushdie ajuda-nos a lidar com os erros cometidos pela morte — este texto foi publicado foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Nas últimas semanas tenho sido acompanhado pelas palavras de Salman Rushdie no seu livro Faca (edição D. Quixote, tradução de J. Teixeira de Aguilar). Estamos perante um exercício radical de memória, embora transcendendo a mera inventariação de factos. O que, evidentemente, não banaliza a perturbação inerente a tais factos, assim resumidos na contracapa: “A 12 de agosto de 2022, trinta e três anos depois da fatwa contra ele decretada pelo aiatola Khomeini, assim que subiu ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, Salman Rushide foi atacado, e quase morto, por um jovem com uma faca.”
Salman Rushdie
O desafio do escritor poderá resumir-se através do enraizamento literário, político e simbólico a que, justamente, as suas palavras tentam responder e corresponder. Na certeza de que o labor da escrita está muito para lá do falacioso conceito corrente — entenda-se: televisivo — de “descrição” do mundo.
Com objectividade e ironia, Rushdie refere o “modo de livre associação” da sua mente. Cita até os seus pensamentos cruzados na noite de 11 de agosto, essa “última noite inocente”. Face ao esplendor da “lua cheia que brilhava sobre o lago”, pensou, entre outras coisas, no instante em que Neil Armstrong pisou a Lua, numa história de Italo Calvino e, por fim, no “momento mais famoso” do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès (evocado através da reprodução do respectivo fotograma). E acrescenta: “Não fazia ideia, ao recordar a imagem da nave a ferir o olho direito da Lua, daquilo que a manhã seguinte reservava ao meu próprio olho direito.”
O atentado de que foi alvo suscita-lhe outras associações cinéfilas, incluindo os “sonhos que eram reminiscências” de Un Chien Andalou (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, filme “em que uma nuvem que corta a lua cheia se converte numa lâmina a cortar um olho”. Para desembocar na tragédia consumada pelos erros estúpidos da morte: “Uma das razões pelas quais o filme Psycho, de Alfred Hitchcock, é tão assustador é morrerem as pessoas erradas. A maior estrela do filme, Janet Leigh, morre passado cerca de meia hora. Aparece o seguro e avuncular detetive Martin Balsam, tipo deixem-isso-comigo e, mal damos por isso, morre também. É aterrador. Era assim que eu começava a sentir-me. A morte estava a apresentar-se nas moradas erradas.”
Há uma mensagem implícita nestas palavras: o naturalismo pueril da mais formatada linguagem televisiva pode dominar (e, de facto, domina) as trocas informativas em que vivemos, mas revela-se irremediavelmente escasso para lidar com a complexidade da experiência humana. E há também em tudo isto uma tragédia de comunicação que o escritor não sabe como resolver (e o leitor ainda menos): como lidar com o próprio autor do atentado?
Escreve Rushdie, designando-o por “A.”: “Como hei de abordá-lo, o detentor da faca? Circundo-o na minha mente, penso em maneiras de iniciar a conversa.” E também: “Não quero ser demasiado amistoso. Não me sinto amistoso. Mas também não quero ser demasiado hostil. Quero abri-lo, se puder. Como um encontro real é improvável — digamos impossível —, tenho de imaginar a maneira de entrar na sua cabeça. Tenho de tentar construí-lo, torná-lo real. Não sei se conseguirei.”
Ao longo de quarenta páginas, Rushdie arrisca mesmo um exercício teatral em que redige esse diálogo “improvável/impossível” com o homem que tentou matá-lo. Quase no fim, diz-lhe: “Começo a perceber. Você quer ser um servo. Andou à procura de um amo ou de uma ideia que fosse maior que você e perante a qual pudesse curvar-se. Não queria ser livre. Queria submeter-se.” Que acontece, então? O agente da morte responde: “Ainda não percebeu. Só a submissão conduz à liberdade. Essa é que é a porra da questão.”
Subitamente, o nosso tão fútil idealismo colectivo encontra a questão que sempre lá esteve, mas que teimamos em iludir ou menosprezar: a palavra “liberdade” não tem uma significação unívoca, nem é uma moeda de troca universal.