terça-feira, julho 16, 2024

Apocalipse em forma de novela

Peter Finch em Network (1976): "A televisão não é a verdade!"

Fazer televisão não é reproduzir o mundo, mas representá-lo: o cinema ajuda-nos a pensar a urgência de tal questão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 junho).

Em 1976, no filme Network (entre nós lançado como Escândalo na TV), o realizador Sidney Lumet, partindo de um argumento de Paddy Chayefsky, colocou em cena a personagem bizarra de Howard Beale. Despedido devido à queda de audiências do seu programa, Beale vive as duas semanas finais do seu trabalho transfigurado em mensageiro do apocalipse. Não uma tragédia bíblica, mas um apocalipse televisivo. A ponto de fazer proclamações deste teor: “Escutem-me: a televisão não é a verdade! A televisão é um perverso parque de diversões! A televisão é um circo, um carnaval, um grupo itinerante de acrobatas, contadores de histórias, bailarinos, cantores, malabaristas, aberrações marginais, domadores de leões e jogadores de futebol.”
O filme está disponível na Apple TV+. Será salutar redescobri-lo evitando a estupidez analítica alimentada por algumas ideias feitas (mal feitas, sem dúvida) sobre as histórias que os filmes contam. Assim, reconhecer o fascínio dramático da personagem de Beale (que valeu um Oscar póstumo a Peter Finch) não é o mesmo que reduzir as suas palavras a um sentido literal, aplicável a qualquer contexto. Ainda menos esquecer que a televisão não se esgota em nenhum padrão estável, de tal modo que nela podemos encontrar, todos os dias, manifestações contraditórias das maravilhas do humano e da sua obscena violentação.
Trata-se apenas de reconhecer que tais palavras transportam uma evidência rudimentar que continua a ser metodicamente recalcada por muitos agentes mediáticos e políticos. A saber: a televisão não é um espelho virginal do mundo — televisão é encenação.
O exemplo português contém algumas preciosas lições. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, uma das primeiras medidas do Movimento das Forças Armadas foi mesmo a ocupação dos estúdios da RTP, em Lisboa. Pouco depois das seis horas da tarde, Fernando Balsinha anunciava uma edição especial do Telejornal com esta clareza: “Atenção, senhores espectadores, muito boa tarde: a partir deste momento, o Movimento das Forças Armadas controla totalmente a rede emissora da Rádio Televisão Portuguesa.”
Há uma dedução rudimentar a extrair desta memória. Transporta uma lição que nem mesmo os 50 anos do 25 de Abril conseguiram devolver à consciência pública: o poder televisivo (poder de emitir, poder de representar e narrar) não é estranho ao exercício do poder político. Sabemo-lo há meio século e, quase sempre, comportamo-nos como se isso fosse indiferente para os nossos valores e o nosso entendimento do mundo.
Roberto Rossellini
O bloqueio de consciencialização não pode ser entendido, nem sequer descrito, a partir de qualquer hipótese apenas moral, tendencialmente moralista. Depois de 50 anos de democracia, a complexidade desafia-nos: das ninharias mais ridículas à seriedade dos temas mais graves da nossa existência comum, passando pela histeria nacionalista que se cola ao futebol, todos os aspectos da nossa vida colectiva parecem depender das mensagens televisivas, ou mesmo de alguma legitimação vinda do pequeno ecrã. A televisão como sistema global de partilha informativa é mesmo apresentada (e, de algum modo, vivida) como aparato transparente e cristalino de “reprodução” do mundo à nossa volta.
Ora, nenhuma imagem reproduz apenas (nem sobretudo) o que quer que seja. Criar e fazer circular imagens é sempre gerar narrativas, acrescentar mundos ao mundo, num processo ancestral que tem um nome interessante: cultura.
Cultura é circulação de valores e, nessa medida, confronto de muitos valores diversos e, no limite, inconciliáveis. De tal modo que pensar, discutir e configurar o território televisivo envolve uma urgência quotidiana. Recordo Roberto Rossellini: “Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea.”
São palavras de um texto ainda mais antigo que o filme Network (publicado na revista Il Tempo, 26 maio 1972), discutindo, em particular, aquilo que, numa Europa obviamente muito diferente, poderia ser uma “televisão do Estado”. São, sobretudo, palavras que nos recordam que não é possível pensar a televisão sem alguma metodologia ideológica. Agora, a palavra “ideologia” vive escondida num assombramento fúnebre. Políticos de todas as cores nela pressentem a ameaça de um desejo de pensamento que pode abalar o seu próprio estatuto. Na prática, os protagonistas da cena política aceitam circular de ecrã em ecrã, como se fossem intérpretes incautos de uma novela que, em boa verdade, ajudam a produzir.