quarta-feira, julho 24, 2024

Do Fundo do Coração
— o cinema é uma arte utópica

Do Fundo do Coração: Teri Garr caminhando nos espaços dos estúdios Zoetrope

Estreado em 1982, Do Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola, regressou às salas de cinema numa esplendorosa cópia restaurada. Transfigurando a herança do musical, nele se reflecte a capacidade de invenção do seu realizador também como produtor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

Francis Ford Coppola
Assim se faz e refaz a história do cinema: de regresso às salas, One From the Heart/Do Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola, é um daqueles filmes cujo génio se revela capaz de baralhar os tempos em que o vemos ou revemos. Rodado em 1981, a sua energia experimental não exclui, antes reforça, a singular nostalgia cinéfila que o faz mover — aconteceu em 1982, na altura da sua estreia; volta a acontecer agora, através de uma reposição em cópia restaurada.
Coppola é mesmo um criador que encara com naturalidade (não confundir com naturalismo) a possibilidade de um filme existir como um objecto ciclicamente à procura da sua forma ideal ou, pelo menos, através de uma organização narrativa sempre em aberto. Assim aconteceu, afinal, com Apocalypse Now que, em 1979, ganhou a Palma de Ouro de Cannes (ex-aequo com O Tambor, de Volker Schlöndorff), ainda apresentado como um “work in progress”. Seria reposto duas vezes: primeiro com mais 49 minutos, Apocalypse Now Redux (2001); depois numa duração intermédia naquela que será a versão definitiva, Apocalypse Now Final Cut (2019), a preferida do realizador.
Deparamos agora algumas pequenas diferenças de montagem — a cópia do primeiro restauro de Do Fundo do Coração, lançada em 2003, durava 99 minutos, a nova versão fica-se pelos 94. Em todo o caso, para lá dessas diferenças, Coppola terá também querido passar a “mensagem” de uma disponibilidade criativa que, neste momento, encontra a sua rima perfeita no assombroso e desconcertante filme que é Megalopolis, revelado em maio na competição oficial de Cannes (tendo ficado fora do palmarés). Num caso como noutro, o cinema apresenta-se como uma arte utópica, sempre à procura de um futuro tecido de linguagens que mantêm os mais inusitados laços nostálgicos com o passado.

O projecto Zoetrope

Em 1982, o aparatoso falhanço comercial de Do Fundo do Coração talvez se possa resumir através de um problema que, em boa verdade, através das mais diversas configurações, pontua todas as épocas (a começar pelo período mudo) da história de Hollywood. A saber: fiel a um espírito genuinamente independente, Coppola apostou numa espectacular reconversão técnica e estética na produção do seu filme, ao mesmo tempo que se alheava das suas formas de promoção e difusão.
Notícias recentes permitem perceber que ele está a lidar de forma diferente com Megalopolis, filme de fabricação ainda “mais” independente, uma vez que foi o próprio Coppola a assumir a totalidade do seu orçamento (120 milhões de dólares). Agora, o acordo com a empresa Lionsgate para a respectiva distribuição no mercado americano (EUA e Canadá) só foi concluído depois de Coppola aceitar custear as acções de marketing — a estreia está marcada para 27 de setembro (nas salas portuguesas surgirá, em princípio, no mês de outubro).
Na época da sua estreia, Do Fundo do Coração era um verdadeiro “ovni” industrial — a começar pela sua concepção financeira. Lembremos a chamada linguagem fria dos números: a produção do filme de Coppola resultou de um investimento de 26 milhões de dólares (liderado pela Columbia), enquanto o mítico fenómeno do mesmo ano de 1982 — E.T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg — se fez com apenas 10,5 milhões. Consultando o “box office” americano, isto significa que o filme de Spielberg acumulou receitas equivalentes a 40 vezes o seu custo, enquanto Do Fundo do Coração “rendeu” 40 vezes menos do que o valor nele investido.
Coppola não estava apostado em fazer apenas um filme diferente das tendências espectaculares do momento, estranho aos valores de “entertainment” que estavam na moda. A sua ambição era mais cristalina e inequivocamente mais radical: ele queria criar um espaço de produção que possuísse a magnitude de um estúdio clássico de Hollywood, mas sem as suas limitações estruturais, e também os seus vícios administrativos.
Do Fundo do Coração surgiu, assim, como a produção mais ambiciosa da Zoetrope Studios, empresa fundada em 1969, em São Francisco, por Coppola e o seu amigo George Lucas, na origem com o nome de American Zoetrope. Na altura de Do Fundo do Coração, Lucas já tinha sido bafejado pelo sucesso planetário da saga Star Wars (cujo primeiro título datava de 1977), além de estar envolvido na criação da personagem de Indiana Jones (Os Salteadores da Arca Perdida, sob a direcção de Spielberg, estreara-se em 1981).
A Zoetrope era mais, muito mais, do que uma “duplicação” dos estúdios clássicos de Hollywood (MGM, Warner, Columbia, etc.). Para Coppola, tratava-se mesmo de inventar um novo ambiente criativo, qualquer coisa como uma grandiosa oficina artesanal, integrando os seus profissionais contratados (actores, argumentistas, realizadores) a trabalhar num espaço diversificado cujos recursos de filmagem (também disponíveis para outros artistas) funcionariam como verdadeiros laboratórios experimentais. Era uma verdadeira “cidade do cinema” albergando salas com exibições regulares, uma biblioteca e restaurantes; Coppola pensava mesmo alugar o Pilot Light Theatre de Los Angeles, para ensaios durante o dia e espectáculos à noite.

Um artesão clássico

A Zoetrope não desapareceu do mapa, tendo recuperado, em 1990, a designação de American Zoetrope. Aliás, as linhas simbólicas que podem ligar Do Fundo do Coração e Megalopolis começam por aí: o primeiro filme surge com chancela Zoetrope Studios, o segundo como uma produção da American Zoetrope, ambos remetendo para a mesma utopia cinéfila.
No património da Zoetrope Studios/American Zoetrope encontramos uma colecção invejável de “filmes de autor”, materializando um conceito de pluralidade criativa capaz de atravessar as mais diversas fronteiras culturais e geográficas. Eis alguns exemplos: THX 1138 (1971), parábola de ficção científica e primeira longa-metragem de George Lucas; Koyaanisqatsi (1982), etapa inaugural da colaboração do realizador Godfrey Reggio com o compositor Philip Glass; As Virgens Suicidas (1999), com Coppola a produzir a estreia na realização de sua filha, Sofia Coppola. Isto sem esquecer as participações em produções “estrangeiras”, por vezes assumindo também a sua distribuição nas salas dos EUA, como Hitler: Um Filme da Alemanha (1977), de Hans-Jürgen Syberberg, Salve-se quem Puder (1980), de Jean-Luc Godard, ou Kagemusha (1980), de Akira Kurosawa.
Foi, aliás, com a marca da sua produtora que, depois do desastre comercial de Do Fundo do Coração, Coppola “renasceu” em 1983 com dois admiráveis filmes “juvenis” baseados em romances de S.E. Hinton: Os Marginais e Rumble Fish. Dito de outro modo: na sua espantosa versatilidade criativa, coleccionando sucessos ou desastres comerciais, Coppola é um legítimo herdeiro dos artesãos clássicos de Hollywood.