O labor de Robert Towne como argumentista reflecte uma velha utopia: saber a verdade, toda a verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 julho).
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Quem conhece o filme, uma das imaculadas obras-primas geradas em Hollywood ao longo da década de 70, recordar-se-á que a resposta final de Evelyn está longe de ser anedótica, esclarecendo uma das fundamentais linhas dramáticas do filme. Meio século depois, a subtil mise en scène de Polanski persiste como uma admirável variação sobre os modelos clássicos do cinema “noir”, satisfazendo a sua primordial esquizofrenia: o retrato dos fantasmas sexuais tende para a contundência da parábola política.
Lembrei-me imediatamente do filme e, em particular, daquelas linhas de diálogo ao ler a notícia da morte de Robert Towne, no dia 1 de julho, contava 89 anos [Deadline]. Autor do argumento de Chinatown (que lhe valeu o único Óscar com que o filme foi distinguido), ele foi, de facto, um dos grandes narradores de uma certa produção americana que, sobretudo ao longo das décadas de 70/80, se apropriou da herança dos modelos clássicos de Hollywood, “forçando-os” a expor os assombramentos que, muitas vezes, se apresentavam filtrados por mecanismos mais ou menos romanescos, eventualmente românticos.
Na sua auto-biografia (Roman, ed. Difel, 1984), Polanski evoca a figura de Towne com particular carinho e admiração, ainda que sublinhando a sua resistência pessoal a esse romantismo obstinado. De tal modo que Towne discordou do desenlace da cena final de Chinatown, imposto por Polanski, dando a Evelyn um destino que não era o que estava inicialmente previsto no argumento (mais tarde, Towne viria a dar razão a Polanski). Seja como for, esse argumento é há muito encarado como uma referência canónica na história do cinema: em 2006, num inquérito para estabelecer os “101 melhores argumentos” de sempre, promovido pelo sindicato dos argumentistas americanos de Los Angeles, Chinatown surgiu em terceiro lugar, depois de Casablanca (1942) e O Padrinho (1972).
A vibração dos diálogos escritos por Towne decorre de um conceito paradoxal: por um lado, as palavras tendem a preservar uma certa “naturalidade” que, de modo mais ou menos discreto, espelha a banal aceleração do quotidiano; ao mesmo tempo, por outro lado, tais palavras parecem suspender-se no tempo, rasgando efémeras paisagens filosóficas onde as personagens arriscam viver (ou morrer) através das singularidades das suas histórias pessoais. Assim acontece em títulos como O Último Dever (1973) e Shampoo (1975), ambos dirigidos por Hal Ashby, ou ainda Tequila Sunrise/Intriga ao Amanhecer (1988), uma realização do próprio Towne. Este é mesmo um drama policial que se confunde com um requiem sobre as derradeiras ilusões românticas, aliás com um trio de intérpretes que, na altura, podia simbolizar tal dinâmica: Mel Gibson, Michelle Pfeiffer e Kurt Russell.
Evitemos, por isso, lidar com a arte de Towne como se fosse uma colecção de diálogos “literários” — o que conta é o serviço que tais diálogos prestam à dramaturgia do filme a que pertencem. Recusemos também a pornografia intelectual que consiste em valorizar uma narrativa audiovisual através da actualidade dos seus “temas” (coisa que passou a acontecer com a miséria narrativa das telenovelas). No limite, Chinatown pode mesmo resumir-se através do desejo humano mais primitivo, e também mais utópico, que uma narrativa pode colocar em cena: o desejo de saber a verdade. O valor da sua herança é inestimável.
>>> Robert Towne nos Oscars (8 abril 1975).
>>> The Last Detail [trailer].