quinta-feira, maio 02, 2024

Rui Ochoa: a arte de fotografar e escutar

Salgueiro Maia fotografado por Rui Ochoa, ou a partilha de um instante

As imagens de Rui Ochoa “ilustram” uma nova canção de João Gil, celebrando a vibração histórica de cada instante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 abril).

Reencontrei esta fotografia de Salgueiro Maia num contexto surpreendente e sedutor. Da autoria de Rui Ochoa, integra o teledisco de O Dia Mais Bonito, canção composta e interpretada por João Gil para o seu novo álbum (Só Se Salva o Amor, a ser lançado no dia 10 de maio). Aliás, o teledisco, produzido pela ADLC-Audiovisuais, com cuidada edição de Raquel Silva, é todo ele construído a partir de imagens de Ochoa, publicadas no livro 74-99, uma antologia fotográfica dos 25 anos vividos a partir de 25 de abril de 1974 (ed. Casa das Letras, 2023).


A fotografia é, em si mesma, um espantoso documento, dando a ver um Salgueiro Maia diferente de qualquer estereótipo, seja ele político ou épico. Não se trata, entenda-se, de esquecer ou minimizar outras notáveis imagens, de outros fotógrafos, que fazem parte da iconografia histórica de Salgueiro Maia e do 25 de Abril. Acontece que esta é uma fotografia cuja “neutralidade” resiste a todas as formas de manipulação mediática — sem esquecer que há um infeliz “simbolismo”, pueril, sempre à beira do pitoresco, que continua a proliferar em muitas linguagens televisivas.
Que vemos, então? Alguém que não pode ser reduzido a mero “emblema” de um acontecimento histórico, por mais que esse acontecimento lhe tenha conferido um lugar central na nossa memória colectiva. E recordamos o lema de Roland Barthes — “isto aconteceu” — quando analisava fotografias que nos instalam no paradoxo que cruza a certeza do facto com o indizível do tempo que passou. Eis um rosto de serena expressividade, um olhar de uma só vez transparente e enigmático; acima de tudo, eis uma presença que consagra um valor tão desvalorizado nos tempos que correm: a escuta.
A imagem encerra o teledisco, reforçando um tom de observação, atenta e pedagógica, que se entrelaça com a singeleza do poema: “Sou do tempo do porque sim / Sou do tempo do porque não”, canta João Gil logo a abrir. A depurada energia do rosto de Salgueiro Maia a pontuar esse final resulta também de uma montagem em que as memórias não estão antecipadamente codificadas (reconheço o preconceito cinéfilo: evito a palavra “edição”, prefiro dizer “montagem”).
O olhar fotográfico de Ochoa nasce de uma genuína disponibilidade para as singularidades dos eventos. Daí a pluralidade das imagens que “ilustram” O Dia Mais Bonito. Pode ser um grupo de crianças de riso cristalino, num cenário de evidente pobreza. Ou o Terreiro do Paço no tempo em que funcionava como imenso parque de estacionamento. Ou ainda um tanque do exército, no dia 25 de abril, a subir a Rua Augusta, superando qualquer cliché decorativo ou turístico. Pode ser apenas uma jovem, anónima, misteriosa, a contemplar a objectiva.
As coisas vão-se diversificando com o aparecimento de figuras públicas: Álvaro Cunhal e outros elementos do Partido Comunista, sentados no Parlamento, a lerem os jornais do dia; Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal num estúdio da RTP, aguardando o início de um debate sobre o “poder local”; Ramalho Eanes, com outros militares de abril, algures no final de uma reunião, numa partilha de sorrisos contagiantes. Nesta última imagem, o olhar feliz de Eanes parece dirigir-se ao próprio fotógrafo, não à procura de qualquer efeito de “pose”, antes partilhando com ele a irredutibilidade do aqui e agora.
Há outros momentos marcados por variações da mesma natureza: alguém parece destacar-se do colectivo que integra e contempla o trabalho do fotógrafo — por exemplo, o velho que, no centro da imagem, se alheia daquilo que talvez seja uma fila de espera para as primeiras eleições livres… não sabemos se imobilizado pela solenidade da situação ou indiferente a tudo o que o rodeia.
Há ainda outra maneira de dizer tudo isto: o labor fotográfico de Rui Ochoa é estranho a qualquer estratégia de “voyeur”. Cada imagem nasce de um genuíno prazer de participar no acontecimento a que, afinal, o fotógrafo também pertence. Por vezes, a aparente ligeireza do momento surge tocada por uma vibração envolvente, sem nome: deparamos com Amália Rodrigues [aqui em baixo], sentada, chávena de chá nas mãos, dois guitarristas atrás de si, a contemplar com evidente concentração algo que está a acontecer… fora do campo da imagem.
Nunca vemos tudo, eis a lição ética e estética. Compreendemos que cada fotografia não esgota, nem pretende esgotar, a complexidade da realidade à nossa volta. O que mais importa é a partilha daquele instante com Salgueiro Maia — e sentimos que também parámos para escutar.