sexta-feira, março 01, 2024

We Are the World
— memórias épicas de uma canção

Lançada em 1985 para angariar fundos para combater a fome em África, a canção We Are the World foi um verdadeiro fenómeno global. Agora, na Netflix, A Grande Noite da Pop faz o retrato fascinante da sua concepção e gravação.

Imaginemos um filme cujo elenco possa incluir, entre outros, os nomes de Ray Charles, Bob Dylan, Michael Jackson, Cindy Lauper, Lionel Richie, Diana Ross, Paul Simon, Bruce Springsteen, Tina Turner, Stevie Wonder… Em boa verdade, esse filme existe desde 1985 — trata-se do teledisco de We Are the World, canção criada para angariar fundos para combater a fome em África. Agora, através de um notável documentário intitulado A Grande Noite da Pop, disponível na Netflix (título original: The Greatest Night in Pop), podemos descobrir aquilo que apetece chamar a “versão longa” do teledisco.
A Grande Noite da Pop faz uma revisitação de We Are the World em parte semelhante à proposta que encontramos na série The Beatles - Get Back (Disney+), de Peter Jackson. Tal como Jackson trabalhou a partir dos registos inéditos das gravações do álbum final dos Beatles (Let it Be), também Bao Nguyen, realizador americano de ascendência vietnamita, pôde aceder a uma espantosa colecção de imagens registadas durante a gravação da canção.


Reconhecemos, claro, as imagens do teledisco, mas as novidades são fascinantes. Há também diversos depoimentos filmados agora, surgindo Lionel Richie como principal narrador: é ele que começa por recordar a origem da canção, primeiro com o impulso decisivo de Harry Belafonte, depois através do envolvimento de Bob Geldof que, no Reino Unido, no Natal de 1984, tinha organizado um projecto humanitário semelhante, dando origem à canção Do They Know It’s Christmas? Seja como for, o essencial são as largas dezenas de minutos (mais de metade do documentário que dura 01h 36m) em que assistimos ao labor de cerca de quatro dezenas de cantores — incluindo o coro que, além de Geldof, integra, por exemplo, Sheila E., Bette Midler e Smokey Robinson — durante uma noite realmente épica.
O título A Grande Noite da Pop é para ser tomado à letra. A partir do momento em que Lionel Richie e Michael Jackson começaram a compor a canção, tendo garantido que a produção estaria a cargo de Quincy Jones (personagem decisiva em toda esta aventura), tratava-se de saber como organizar a logística de uma gravação que, além de outros convidados, iria integrar vários dos participantes nos American Music Awards, a realizar, também em Los Angeles, na mesma noite do dia 28 de janeiro de 1985… e com apresentação de Lionel Richie.
Deparamos com toda uma colecção de pormenores inesperados ou desconcertantes — desde o mal estar inicial de Bob Dylan perante a altura das notas que Quincy Jones estava a pedir, até ao comportamento errático de Al Jarreau, consumindo mais do que o aconselhável das garrafas que começaram a aparecer no estúdio, passando pelos ruídos na gravação da voz de Cindy Lauper… por causa dos exuberantes colares que usava nessa noite. Em qualquer caso, A Grande Noite da Pop não se esgota numa acumulação de elementos mais ou menos pitorescos, impondo-se como um testemunho exemplar de um trabalho colectivo que, escusado será sublinhá-lo, resistiu ao tempo, às modas e às próprias transformações do audiovisual nas décadas que se seguiram.