Patti Smith, Poeta do Rock: um filme sobre a construção de uma identidade artística |
Eis uma bela surpresa com chancela da Zero em Comportamento: Patti Smith, Poeta do Rock é um filme do canal Arte capaz de nos devolver a energia e os contrastes de uma trajectória criativa sem equivalente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 janeiro).
No panorama da distribuição/exibição cinematográfica em Portugal, a diversificação da oferta é uma questão de sempre, cada vez mais importante. De uma maneira ou de outra, todos os agentes do mercado estão sensibilizados para tal questão e é um facto que, mesmo reconhecendo os desequilíbrios que persistem, algo mudou nos últimos anos, em particular através do labor das empresas da chamada área independente.
No caso da Zero em Comportamento — que organizou o primeiro IndieLisboa, em 2004, tendo mantido uma ligação com o festival até 2013 —, a sua oferta decorre de uma especial relação de trabalho com as escolas, organizando programas de sensibilização e formação artística em que o cinema desempenha um papel nuclear. Ao mesmo tempo, através de estreias ou da recuperação de títulos já lançados no mercado, a sua actividade reparte-se pelas salas e pelos videoclubes (o próprio e também os das operadoras).
Com uma presença ainda limitada no circuito das salas, a Zero em Comportamento tem apostado em exibir cada um dos seus lançamentos regulares (“Filme do mês”) em sessões em espaços alternativos, nomeadamente em auditórios de associações culturais. Uma estreia a merecer destaque neste janeiro tem a sua chancela: passou na última edição do IndieLisboa, chama-se Patti Smith, Poeta do Rock e terá a sua primeira exibição amanhã, em Lisboa, no City Alvalade (21h30). Seguir-se-ão a Biblioteca de Marvila (dia 20, 21h00, incluindo debate com Inês Meneses), a Nova SBE - Campus de Carcavelos (dia 25, 19h00), a Biblioteca Orlando Ribeiro, Telheiras (dia 27, 21h00) e a Biblioteca de Alcântara (dia 28, 18h00 e 19h15).
Realizado por Sophie Peyrard e Anne Cutaia, Patti Smith, Poeta do Rock é, de facto, uma bela surpresa, tanto mais motivadora quanto, à partida, poderia esgotar-se numa função “descritiva”, característica de muitos produtos de raiz televisiva. Daí a inevitável ironia: estamos, de facto, perante uma típica produção do Arte, uma das muitas que o canal franco-alemão tem dedicado a figuras marcantes das artes contemporâneas. O certo é que assistimos a algo que nem sempre é perceptível em propostas documentais da mesma natureza: não apenas um acumular de dados mais ou menos enciclopédicos sobre a figura retratada (o que, como é óbvio, não exclui a importância didáctica de tais dados), mas uma narrativa que nos faz descobrir, ou redescobrir, a trajectória de Patti Smith a partir da singular elaboração de uma genuína identidade artística.
Nesta perspectiva, creio que o valor primordial de Patti Smith, Poeta do Rock decorre do modo como nos dá a ver a criadora de canções como Redondo Beach, People Have the Power [video] ou Because the Night (esta resultante de uma lendária colaboração com Bruce Springsteen) enquanto protagonista de um curioso “desvio” criativo. Dir-se-ia que ela vive uma aventura em que a escrita se abre ao mundo, transfigurando-se em música.
Em 1967, aos 20 anos de idade, quando abandona os estudos em New Jersey e tenta a sua sorte em Nova Iorque, Patti Smith afirma-se como alguém que está à procura da sua própria linguagem poética. Define-se mesmo como uma artista de performances em que a palavra (poética, justamente) surge como matéria decisiva.
O contexto da “contracultura” da época — em parte ligada aos crescentes protestos contra a guerra do Vietname — gera em Patti Smith uma energia e um desejo de auto-descoberta que não será alheio à sua convivência com Andy Warhol, William S. Burroughs, Bob Dylan ou Allen Ginsberg, sem esquecer, claro, a ligação amorosa com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, tão admiravelmente evocada no seu livro Just Kids/Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2011).
Lançado em 1975, Horses, o primeiro álbum de Patti Smith — com a célebre fotografia da capa, em pose andrógina, da autoria de Mapplethorpe — surgiu, assim, como a proeza de alguém que, concebendo a escrita da sua poesia como indissociável do acto de a dizer em público, ao mesmo tempo recebe, transfigura e reinventa a força de um som rock marcado pela convulsão do punk. Para resumir o fascinante caldeirão cultural da época, lembremos apenas que 1975 é também o ano de álbuns como Blood on the Tracks, de Bob Dylan, Born to Run, de Bruce Springsteen, e Acid Queen, de Tina Turner, ou de filmes como Tubarão, de Steven Spielberg, e Voando sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman.
Patti Smith, Poeta do Rock evoca tudo isso através de uma imensa antologia de imagens emblemáticas, dos concertos à agitação política nas ruas, passando por vários registos de bastidores (incluindo, por exemplo, a Factory de Andy Warhol) e algumas das mais antigas entrevistas de Patti Smith. Aliás, vale a pena recordar que foi também em 1975 que Bob Dylan organizou uma mítica digressão, “Rolling Thunder Revue”, em que participaram Joan Baez, Joni Mitchell e… Patti Smith — as respectivas memórias estão registadas num admirável filme de 2019, homónimo, assinado por Martin Scorsese e disponível na Netflix.
Ainda em 1975, numa performance pública, na sequência das celebrações do fim da guerra do Vietname, Patti Smith recusava o uso de “metralhadoras e bombas”, exibindo a sua guitarra “o nosso instrumento de guerra” e “o nosso instrumento de combate”. Por isso, faz todo o sentido que o título português do filme exalte a sua condição de “poeta do punk”, tal como o francês Patti Smith, La Poésie du Punk. Seja como for, lembremos a opção em inglês: Patti Smith, Electric Poet — dito de outro modo: com ela, a linguagem poética é uma questão de electricidade.