quinta-feira, janeiro 26, 2023

Lídia Jorge e a noite da escrita

Morangos Silvestres (1957): o cinema perante a crueldade do tempo

Vivemos numa cultura mediática que recusa lidar com a dimensão humana da morte. Mas há romances (e filmes) que resistem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 janeiro).

Ao ler o novo e belíssimo romance de Lídia Jorge, Misericórdia (ed. D. Quixote, outubro de 2022), revi a memória de alguns momentos emblemáticos de filmes centrados no envelhecimento dos seus protagonistas, em particular com assinatura de Ingmar Bergman. Ao dizê-lo assim, como uma espécie de causa e efeito, sei que estou a atrair um velho lugar-comum do qual gostaria de me demarcar.
Não se trata de sugerir que a escrita literária é intrinsecamente limitada, necessitando de uma confirmação “visual” para cumprir os seus desígnios. Além do mais, não me reconheço, nem de longe nem de perto, na noção corrente, poderosíssima, que define a relação com um livro como uma antologia de imagens “motivadas” pela própria escrita — quando alguém celebra o facto de, ao ler um romance, lhe “parecer que estava a ver” aquilo a que o autor se refere, ainda que respeitando as sensações de cada um, sou levado a pensar que o leitor terá visto muita coisa… mas não viu a própria escrita.
Lídia Jorge
Que acontece, então, nesta narrativa na primeira pessoa de uma personagem que se chama Maria Alberta Nunes Amado, habitante de um lar que ostenta o nome, inevitavelmente ambíguo, de Hotel Paraíso? A resposta, sem nada de esotérico, poderá ser: desde o primeiro momento, somos confrontados com as marcas muito concretas da noite. Que noite é essa? As primeiras linhas do primeiro capítulo (com um título programático: “Atlas”) são exemplares. Cito-as (pág. 11): “Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.”
Eis a claridade que nasce da escrita: a noite dentro da noite é a morte. E o que dela, na noite que a transporta, desafia o ser humano na sua condição de ser da linguagem — e através da linguagem. Como dizer a morte? Que palavras acrescentar à sua proximidade? Maria Alberta reconhece o impasse (pág. 60): “Desde há algum tempo que os meus pensamentos são muitos, mas as minhas letras são poucas. Sobre o papel, junto só as palavras essenciais como costumam fazer as crianças quando ainda não sabem construir frases e, no meu caso, daí resultam escritos a que dificilmente alguém, além de mim própria, poderá atribuir um sentido.”
Esta irredutibilidade individual afasta-nos de outros dois lugares-comuns, ambos muito na moda, que tendem a conferir um inusitado poder mediático a quem (realmente ou supostamente) os protagoniza: primeiro, Misericórdia não é um livro sobre o “tema” do envelhecimento, como se a inventariação de um “tema”, seja ele qual for, fosse o destino obrigatório de qualquer narrativa; segundo, Misericórdia não é uma ilustração mais ou menos redentora do “feminino”, como se uma narrativa centrada numa mulher não pudesse deixar de ser uma exaltação de “todas” as mulheres, como se o universo das mulheres fosse um colectivo político em que qualquer uma delas está (narrativamente) condenada a ser um “símbolo” de todas as outras — seria uma estupidez aplicar tal noção a uma personagem masculina, por que razão se transforma em obrigação panfletária quando é uma mulher que está em cena?
De que nos fala, então, esta narradora? Maria Alberta reconhece-se perante o indizível da morte (pág. 119): “A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço.” Aliás, com uma secura que repele a piedade obscena com que, no circo mediático, são tantas vezes tratados os mais velhos: “Recuso o lamento, repudio a contemplação da doença e condeno o prolongamento da vida para além dos seus limites.”
Retomo, por isso, a hipótese “bergmaniana”. Assim como a escrita de Lídia Jorge lida com o indizível — materializando a distância imaterial em que reconhecemos a “figura” da morte —, assim também em filmes como Morangos Silvestres (1957) deparamos com a contradição criativa do gesto cinematográfico. A saber: enfrentar a morte como “objecto” que resiste a ser filmado.
Logo na abertura de Morangos Silvestres, reveja-se o sonho da personagem do velho interpretado por Victor Sjöström. Os pressentimentos da morte, incluindo uma carruagem funerária sem condutor, adquirem a sua expressão mais intensa num relógio sem ponteiros — este é um tempo que perdeu as medidas do tempo. Ou como diz Maria Alberta (pág. 203): “As horas são a melhor manobra que se inventou de modo a desafiar a ausência de fim. Invenção humana para retalhar o tempo e dar-lhe o sentido que porventura não tem.”
Vivemos um tempo dominado por determinismos mediáticos em que muitos protagonistas, homens e mulheres, velhos e novos, parecem condenados a ilustrar uma condição de vida, espectacular e festiva, que não reconhece a verdade da própria morte — verdade humana, demasiado humana, ainda que não seja possível escrevê-la ou filmá-la. O romance de Lídia Jorge resiste a tudo isso, espelhando a cruel prisão do tempo. E também o seu carácter insondável. O que não impede que a angústia do empreendimento envolva uma irredutível alegria. Alegria de quem? De ninguém em particular, apenas da própria escrita.