James Cameron |
Por estes dias, os ecrãs de todo o mundo estão ocupados por Avatar: O Caminho da Água. É pena que ao filme falte uma ideia de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 dezembro).
Tendo em conta a actual conjuntura social de consumo do cinema, não é arriscado prever que Avatar: O Caminho da Água, a ocupar milhares de ecrãs de todo o mundo, vai ser visto por muitos milhões de pessoas. E transformar-se num gigantesco fenómeno financeiro. O marketing não deixará de rentabilizar tal conjuntura. Fá-lo-á com toda a legitimidade — esperemos apenas que, por uma vez, sem colar aos números das bilheteiras o rótulo de filme “consagrado pela crítica”.
Acontece que tal expressão é sempre mentirosa: mesmo dois textos com juízos positivos (ou negativos) sobre um mesmo filme reflectem diferenças mais ou menos profundas sobre o próprio conceito de “crítica”. Neste caso, vale a pena ler alguns textos americanos (p. ex: The Washington Post, Time, Variety) e europeus (p. ex.: The Guardian, The Independent, The Irish Times) para sabermos, pelo menos, que não há nenhuma unanimidade em torno de Avatar: O Caminho da Água.
Insisto neste ponto, e não por causa da minha apreciação negativa do novo filme de James Cameron: falar dos críticos de cinema como um rebanho que se move sempre em bloco é simplesmente insultuoso. A crítica de cinema (ou de qualquer outro domínio artístico) existe num território de muitas clivagens analíticas, não poucas vezes de perspectivas dissonantes e inconciliáveis — exemplo próximo, neste jornal, poderá ser o entusiástico artigo do meu amigo Rui Pedro Tendinha (DN, dia 15) sobre este mesmo filme.
Entenda-se, por isso: avançar algumas ideias sobre Avatar: O Caminho da Água, como tento aqui fazer, não visa “desmentir” qualquer ponto de vista diferente — se pensássemos todos do mesmo modo a monotonia seria letal. O objectivo é tão só a partilha de duas ou três ideias sobre a desagregação cinematográfica e cinéfila que, a meu ver, o trabalho de Cameron reflecte e, mais do que isso, protagoniza.
Escusado será lembrar que os blockbusters não são “bons” nem “maus” apenas porque são blockbusters. E também que não está em causa o lugar emblemático que Cameron ocupa na evolução do “entertainment”, sobretudo graças a Exterminador Implacável 2 (1991), com Arnold Schwarzenegger, e o primeiro Avatar (2009), capaz de tratar a paisagem digital como nova e exuberante “personagem” épica.
O que agora está em jogo é bem diferente: importa lidar com a actual decomposição dos valores mais primitivos do cinema. A começar pela noção de plano, isto é, esse fragmento de acção que se define pela composição de um determinado espaço e pela gestão associada de um determinado tempo.
Vemos Avatar: O Caminho da Água e chega a ser patética a incapacidade, ou apenas o desinteresse, para construir algo que envolva o prazer (cinematográfico, justamente) de contemplar uma acção que aconteça num espaço específico, num tempo controlado. Prevalece a aceleração gratuita de um vulgar clip publicitário ou televisivo, como se se tratasse de construir mais de três horas de filme a partir da “estética” típica de 30 segundos de alguns flashes visuais (e outras tantas agressões sonoras). A hora final, centrada no combate entre os “bons e os “maus”, mais parece saída de um desses filmes de mercenários com que Sylvester Stallone foi destruindo as potencialidades da fase inicial da sua carreira.
Não estou a falar de nada de esotérico que o espectador não possa reconhecer de modo instintivo. Por contraste, lembremos a sequência de abertura de Aconteceu no Oeste (1968), de Sergio Leone, ou a cena do chuveiro de Psico (1960), de Alfred Hitchcock: não será necessário consultar uma tese de 500 páginas para saber que aquilo que vemos — e ouvimos! — decorre de um minucioso trabalho de amostragem do espaço, a par de uma criteriosa gestão da duração dos acontecimentos.
E não se trata de uma questão de maior ou menor “velocidade”. As coisas são menos simples e muitíssimo mais interessantes: a asfixiante lentidão de Leone gera um efeito de vertigem, enquanto a delirante angústia de Hitchcock parece congelar as medidas do próprio tempo. É isso que faz a beleza do cinema, não esta estratégia de bombardeamento visual e sonoro que comanda todos os elementos de Avatar: O Caminho da Água: o espectador é mesmo entendido como “coisa” a ser dominada pelo mais absoluto sonambulismo narrativo. No limite, somos cercados pelo desregrado “faz de conta” de muitos jogos de video, promovendo um acto de ver e ouvir em tudo e por tudo alheio aos valores específicos do cinema.
O caso agrava-se com a falta de investimento no trabalho de argumento. E não me estou a referir apenas à tacanhez dos diálogos, dignos de uma telenovela com “mensagem” ecológica. Pensemos, por exemplo, em Parque Jurássico (1993), de Steven Spielberg: será que os incríveis dinossauros digitais poderiam ter algum impacto dramático se não surgissem inseridos numa narrativa devidamente ponderada entre momentos de aceleração e hiatos de pausa ou contemplação? No caso de Avatar: O Caminho da Água, dir-se-ia que alguém julgou que uma narrativa se faz de um clímax, a que se cola outro clímax, e mais outro… Resultado: não há intensidade dramática porque, por definição, um clímax só funciona através do contraste com a sua própria ausência, espera ou expectativa.
Infelizmente, Martin Scorsese tinha razão quando chamou a atenção para o facto de haver filmes contemporâneos, nomeadamente de super-heróis — referia-se aos produtos com chancela Marvel — que “não são cinema” (leia-se o seu artigo, já um clássico da escrita sobre cinema, publicado no New York Times de 4 de novembro de 2019). São objectos que resultam de aparatos tecnológicos, lógicas de produção e estratégias de promoção que ignoram todos os valores narrativos que, de Chaplin a Spielberg, passando por Ford, Kubrick ou Coppola, sustentaram (e sustentam) a história do cinema — em particular a história de Hollywood. Avatar: O Caminho da Água é produto desse vazio artístico e conceptual. O seu alvo, porventura também a sua invenção, é um público sem memórias.