domingo, novembro 06, 2022

Louis Malle
— memórias de “outra” Nova Vaga

Louis Malle

Num ciclo a decorrer na Cinemateca, integrado na Festa do Cinema Francês, encontramos três dezenas de filmes de Louis Malle, cineasta fundamental, por vezes secundarizado, cujos trabalhos de ficção coexistiram com um obstinado gosto documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 outubro).

Dizia Jean-Luc Godard que ele e os seus companheiros da Nova Vaga francesa promoveram a “política dos autores” como um sistema de valorização do trabalho dos cineastas — os “autores”, precisamente —, menosprezando aquela que seria a dimensão mais importante. A saber: a “política”. Podemos perverter a lógica da sua afirmação, recordando que, por vezes, houve autores que, no imaginário cinéfilo, foram sendo “politicamente” secundarizados. Será, creio, o caso de Louis Malle (1932-1995), este ano em destaque na Festa do Cinema Francês através de um ciclo de três dezenas de títulos.
A projecção dos filmes de Malle, quase todos em duas sessões, terá lugar na Cinemateca (instituição que, uma vez mais, se associa à Festa). O ciclo começou no dia 2, com Le Feu Follet (1963), terminando no dia 30, com Vanya on 42nd. Street (1994). Estes dois títulos podem mesmo condensar a fascinante diversidade que caracteriza a trajectória de Malle: o primeiro, nunca estreado comercialmente em Portugal, com Maurice Ronet e Jeanne Moreau, ilustra a importância do drama intimista no universo de Malle; o segundo tem como ponto de partida uma singular experiência de encenação com O Tio Vânia, de Tchekov, num teatro de Nova Iorque, envolvendo actores como Wallace Shawn, Julianne Moore e Larry Pine (actualmente na série Succession) — foi o último título do período americano de Malle e também o seu filme final.
Vanya on 42nd. Street
é uma referência tanto mais sugestiva na trajectória do realizador quanto pode simbolizar a importância que as componentes documentais adquiriram em diversos momentos do seu trabalho. Nesta perspectiva, o ciclo permitirá descobrir ou redescobrir a visão de Malle documentarista e não apenas por causa de O Mundo do Silêncio (1956), co-realizado com Jacques-Yves Cousteau, sobre a exploração dos fundos marítimos, consagrado com a Palma de Ouro de Cannes (que, em qualquer caso, o próprio Malle nunca reconheceu como muito significativo na sua obra). Serão também projectados, por exemplo, L’Inde Fantôme (1969), série resultante de uma viagem pela Índia, e Calcutá (1969), longa-metragem gerada durante a mesma viagem e também um dos exemplos mais admiráveis de um olhar que, evitando “explicar” de modo automático, se entrega, mais que tudo, a um exercício de metódica contemplação dos lugares que vai descobrindo.
Estarão, obviamente, presentes vários dos títulos mais célebres da filmografia de Malle, incluindo Os Amantes (1958), com Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory, Viva Maria (1965), uma “superprodução” rodada no México com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, ou Atlantic City (1980), referência nuclear do trabalho nos EUA, com Burt Lancaster e Susan Sarandon nos bastidores do mundo dos casinos, um drama romântico que não deixa de integrar inesperados elementos documentais. A não esquecer também Sopro no Coração (1971), com Léa Massari, melodrama familiar que, há meio século, agitou os mercados devido aos seus elementos incestuosos, e o belíssimo Adeus, Rapazes (1987), tragédia vivida num colégio interno francês em plena ocupação nazi, uma memória visceral e auto-biográfica.