quinta-feira, setembro 22, 2022

O melodrama ainda é o que era

Sasha Lane e Alison Oliver em Conversations with Friends:
a juventude representada para lá dos clichés mediáticos

Duas magníficas séries disponíveis na plataforma HBO Max — Normal People e Conversations with Friends — evocam estilos, histórias e personagens do cinema clássico: na sua origem estão os romances homónimos da irlandesa Sally Rooney — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 agosto).

No meio do ruído circundante de aventuras mais ou menos virtuais, em formato de jogo ou filme, continuamos a ser (des)educados para encarar a palavra “melodrama” como uma curiosidade pitoresca e dispensável, ou mesmo um disparate de tempos antigos. E, no entanto, a ironia aí está: quem olhar com alguma atenção e disponibilidade para as zonas menos óbvias do império televisivo, incluindo as suas ramificações em “streaming”, poderá encontrar vários legítimos e talentosos herdeiros da grande tradição melodramática. É o caso das mini-séries Normal People e Conversations with Friends (disponíveis na plataforma HBO Max), ambas com doze episódios de meia hora.
O que une estas duas produções é, antes do mais, a sua inspiração literária: ambas resultam de adaptações de romances da irlandesa Sally Rooney (o primeiro está editado entre nós, pela Relógio D’Água, com o título Pessoas Normais). São produções com chancela da BBC 3, associada a uma televisão irlandesa (RTÉ One) e a um serviço de streaming dos EUA (Hulu).
O melodrama, entenda-se, está longe de se reduzir a qualquer noção banalmente sentimental, ainda que não possamos esquecer a sua histórica ambivalência: tempos houve em que a palavra “sentimento” sugeria alguma proximidade com os segredos mais fascinantes do comportamento humano (da nossa alma, diziam os mais empenhados); hoje em dia, tristemente, no nosso mundo de ligações aceleradas, tudo isso tem fraca cotação mediática.

Elogio dos actores

Pois bem, vale a pena pararmos para olhar à nossa volta. Ou, pelo menos, prestar um mínimo de atenção aos espantosos actores que podemos encontrar nestas duas ficções. Sim, porque a verdade interior do melodrama tem sempre que ver com os seus intérpretes, mais exactamente com o misto de intensidade e vulnerabilidade com que sabem representar as infinitas nuances das relações humanas. Para nos ficarmos pela inspiração dos clássicos, lembremos o cinema do americano Elia Kazan ou do francês François Truffaut — e recordemos filmes tão especiais como Esplendor na Relva (1961), do primeiro, ou A Sereia do Mississipi (1969), do segundo.
Normal People apresenta Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal como estudantes de uma escola secundária de Sligo, pequena cidade costeira no no norte da Irlanda — segundo o censo de 2016, tinha 20 mil habitantes. Por eles passam as convulsões de um amor de paradoxal vibração, sistematicamente posto em causa pela própria transparência moral que o fundamenta.
Aspecto nada secundário é a delicada encenação das muitas cenas de sexo que a série integra. Valeria a pena compreender (e, se não for pedir muito, sentir) que, ao contrário do que está consagrado no imaginário das telenovelas, a intensidade dessas cenas não decorre dos centímetros de pele nua que são mostrados ao espectador. Nelas encontrarmos, não uma performance pueril, mais ou menos acrobática, mas sim pessoas vivas habitadas por uma intermitência de prazer e angústia, revelação e ocultação.
Em Conversations with Friends, as personagens centrais, interpretadas por Alison Oliver e Sasha Lane, são duas amigas estudantes de Dublin. Toda a sua existência — da relação que mantêm até à percepção dos outros — vai ser transfigurada por um casal um pouco mais velho (uma poetisa e um actor). No labirinto que assim se instala, a banalidade eventualmente associada ao próprio título é desmentida pela própria acção: as “conversas entre amigos” estão longe de ser a mera expressão de uma amizade consolidada ou de um qualquer impulso amoroso… Conversar é, em última instância, refazer os equilíbrios e desequilíbrios do mundo, numa dinâmica, sensual e filosófica, em que as palavras podem ser tão radicais, e também tão enigmáticas, como os corpos que se tocam.

Redescobrir a juventude

Ligado a ambas as séries surge o nome de Lenny Abrahamson, cineasta irlandês que conhecemos, em particular, através de dois filmes verdadeiramente invulgares: Frank (2014), com Michael Fassbender, e Quarto (2015), com Brie Larson no papel que lhe valeu o Oscar de melhor actriz. Em Normal People, cujo lançamento ocorreu em 2020, Abrahamson reparte a realização dos episódios com Hettie Macdonald; em Conversations with Friends, já com data deste ano, o trabalho é dividido com Leanne Welham.
A energia melodramática de ambas as produções é tanto mais surpreendente quanto o domínio das séries, em especial na imensa e poderosa galáxia do “streaming”, está dominado por projectos bem diferentes — ou talvez devamos dizer que esse domínio, sendo industrial, é todos os dias sustentado por um marketing que pouco ou nada se interessa por produtos como Normal People e Conversations with Friends.
A sua filiação na história e no património narrativo do melodrama possui uma dimensão genuinamente universal — para nos ficarmos pelo domínio britânico, lembremos apenas nomes de realizadores como Michael Powell, David Lean, Stephen Frears, Terence Davies ou mesmo esse inclassificável autor “melodramático” que é Peter Greenaway. No caso particular destas narrativas, com um complemento que está longe de ser indiferente. A saber: a recusa dos clichés (cinematográficos e televisivos) de representação das personagens mais jovens.
Assim, não encontramos aqui a “juventude” reduzida a uma espécie de ilha existencial, alheia às atribulações do resto do mundo. E não deixa de ser significativo que, tal como na escrita de Sally Rooney, todos os dados existenciais — da vida sexual às diferenças de estatuto social, passando pelo valor prático e simbólico do dinheiro —, tudo se contamine e enrede. A certa altura, em Normal People, Connell (a personagem interpretada por Paul Mescal), escreve estas palavras de amarga e luminosa poesia: “Para mim, é estranho que os animais fiquem parados porque parecem tão inteligentes. Mas isso é, talvez, porque associo a pausa ao pensamento.”