sábado, setembro 24, 2022

João Botelho
— retrospectiva / entrevista [2/2]

© Paulo Alexandrino/Global Imagens

A primeira longa-metragem de João Botelho, Conversa Acabada, surgiu em 1981. Daí até ao recente Um Filme em Forma de Assim, o cineasta percorreu um caminho em que as formas do cinema nascem, quase sempre, de uma relação criativa com a literatura. Agora que a sua obra pode ser vista em retrospectiva na Cinemateca (até ao final de setembro), revisitamos com ele temas e silêncios da história portuguesa — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (3 setembro), com o título '“Aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa”'.

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Diz-se, por vezes, que esse regresso aos textos [literários] pode contribuir para que as pessoas leiam mais. Será assim?
Sem dúvida: com Os Maias, foram mais 50 mil exemplares que se venderam.
Toda essa integração de textos justifica que se diga que, enquanto cineasta, és também um historiador. Podemos lembrar o exemplo de Um Adeus Português, em 1986...
Com esse filme, fui pioneiro na abordagem da Guerra Colonial. Mas não é exactamente sobre a guerra… é sobre o luto da morte e o silêncio dos portugueses.
Silêncio?
Quando há acontecimentos graves, os portugueses não gritam — calam-se. Tive experiências dessas na minha família, não se falar de quem morreu. Os portugueses metem o luto cá para dentro. Já não é bem assim, mas a nossa história é feita muito disso, desse silêncio. Não gosto dos filmes de consolação, gosto dos filmes que inquietam, capazes de colocar perguntas — quem responde são as pessoas que vão ver os filmes.
Faz sentido dizer que aquilo que filmas é também um certo luto por um Portugal utópico que não vai voltar?
Para mim, sim. Quando fiz a Conversa Acabada, o que era importante para um puto como eu, que estava a começar, era o modernismo português: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza Cardoso, Almada Negreiros. Eram minoritários, mas tudo aquilo tinha qualquer coisa de grandioso, em paralelo com o que se estava a passar na Europa. Depois, aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa.
É verdade que, além da literatura, a pintura, a matéria pictórica, é para ti igualmente importante?
Sim, claro. No início, o facto de eu ter sido também gráfico, podia funcionar como uma espécie de acusação... Acontece que o ecrã é como uma folha branca: temos de pôr coisas lá dentro. Censuravam-me o facto de os planos serem tão concebidos, a ponto de se perder a sequência. Mas isso tinha também que ver com os actores: eu gostava mais dos não-actores, tinha medo dos actores — agora já não tenho, ponho-lhes a mão, abraço-os, mas dantes tinha medo. Seja como for, sempre me defini como um cineasta do tempo e da palavra, não da montagem nem da acção. Na verdade, a minha montagem faz-se logo durante a filmagem: aquilo só cola de uma maneira, se um plano está mal, a sequência vai toda ao ar! Quando escrevo um argumento, já sei como vou filmar — o que tem também que ver com a economia, com aquilo que chamo o processo teatral. Não vale a pena filmar, filmar, filmar... Faço como no teatro: ensaio primeiro, trabalho um mês com os actores e filmo rapidamente — torna tudo mais barato.
A partir de certa altura, esse sistema de fazer filmes parece tornar-se indissociável do produtor Alexandre Oliveira e da empresa Ar de Filmes?
É verdade. Existe entre nós um acordo pensado em função dos limites dos orçamentos e das necessidades de cada filme. Eu inventei uma ideia de serviço público no cinema português. Se só há filmes com o apoio do Estado, então temos de devolver alguma coisa. Por exemplo, com o Filme do Desassossego, feito a partir de Fernando Pessoa, andei de terra em terra, fiz 170 projecções... Com os mais jovens, fiz apresentações que não eram exactamente para explicar o filme, mas sim para os ajudar a perceber o que é o cinema.
Que futuro podemos esperar?
Lembro-me, quando apareceu a televisão, de ver coisas colectivamente. Depois, cada um começou a ter a sua televisão no quarto. Depois, vieram os computadores, agora temos os telemóveis e isso produziu uma certa uniformização da imagem e do som. Os jovens vão ver filmes com 3000 planos... Será que ainda vês algum plano? Não vês nada. E os 10 mil efeitos sonoros? Não ouves nada. Agora, o que mais me inquieta é que a relação de muitos jovens com o ecrã não é com o cinema, mas os telemóveis. Já me aconteceu ir a uma sala de cinema e há quem não esteja a olhar para o ecrã, mas para “isto”... Têm medo daquela coisa grande que é o ecrã.
Agora, na retrospectiva da Cinemateca, há uma secção (“Carta Branca”) para a qual escolheste uma série de filmes de cineastas que te marcaram especialmente: John Ford, Robert Rossellini, Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, etc. Que aprendeste com esta gente toda?
Aprendi muito. A começar pelo Sr. Oliveira que me ensinou que, não havendo dinheiro para a carruagem, então filmas a roda... mas filmas bem a roda! Ou o Ford, cm quem aprendi que, se mexes a câmara, não mexas os cavalos, senão distrais as pessoas... É a ideia de filmar o essencial — gosto dos ascetas.