sexta-feira, agosto 05, 2022

Por amor do Irão
(e do cinema iraniano)

Três cineastas iranianos foram presos no seu país: são sinais inquietantes que nos levam a revalorizar a cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 julho).

Quando entramos no verão cinematográfico, reaparece uma expressão vinda de lado nenhum, como uma espécie de mediocridade compulsiva: silly season. A saber: estamos na “estação” das coisas “estúpidas”. Mais do que isso: devemos vivê-la como uma bênção capaz de desculpar e, pior um pouco, legitimar o nosso infantilismo crónico. No dizer aparentemente mais bem disposto dos brasileiros: esta é a “temporada boba”.
Mohammad Rasoulof
O efeito é conhecido: o cinema seria uma coisa fútil, sem importância ou significado nas nossas existências e só mesmo os pobres dos críticos é que ainda andam por aí a pensar, pensar, pensar, inchados de seriedade e filosofia. Enfim, a solidão do trabalho crítico não é de hoje, nem exclusiva do cinema — há que reconhecer que, quase sempre, o cinismo cultural (aliás, a cultura do cinismo) continua a ser mais forte do que qualquer desejo de pensar. Mas é o cinema, precisamente, que devolve aos mais distraídos a possibilidade de não abdicar da inteligência e, nessa medida, não banalizar o mundo à nossa volta.
Assim, por estes dias, recebemos uma notícia do mundo do cinema que, no limite, nos leva a encarar a questão dramática, concisa e urgente, da defesa dos direitos humanos: os realizadores Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram presos no Irão, depois de uma tomada de posição na Net, protestando contra a violência desproporcionada usada pelas forças de segurança (#put_your_gun_down) na repressão de manifestações na cidade de Abadan, na sequência de protestos populares pelo desabamento de um prédio que fez 41 vítimas mortais.
A notícia, divulgada pela revista americana Variety (13 julho), referia ainda que essa tomada de posição fora assinada por cerca de 70 membros da comunidade cinematográfica do Irão. Dois dias mais tarde, outro cineasta iraniano, Jafar Panahi, dirigiu-se ao procurador encarregado de tratar do caso, sendo também encarcerado. Panahi, recorde-se, além de já ter sido preso em 2010, foi nesse mesmo ano punido com a interdição de filmar durante duas décadas — o que, convém sublinhar, não se concretizou: em 2011, por exemplo, enquanto aguardava o resultado do apelo que interpôs, realizou, sem sair de casa, esse filme admirável que dá pelo título de Isto Não É um Filme.
Como o espectador mais atento saberá, estes são nomes que têm sido reconhecidos nos circuitos internacionais, em particular nos grandes festivais. Entre os muitos prémios que já receberam, um dos mais recentes foi o Urso de Ouro da edição de 2020 do Festival de Berlim, para O Mal Não Existe, de Mohammad Rasoulof, uma colecção de quatro histórias autónomas que define um espantoso libelo contra a pena de morte; impedido de sair do Irão, o realizador foi então representado pela sua filha Baran Rasoulof (também actriz do filme). Entretanto, entre as entidades que já protestaram contra esta vaga de prisões, incluem-se a Academia Europeia de Cinema e as direcções dos festivais de Berlim, Cannes, Locarno e Veneza.
Creio que importa olhar para estes factos com serenidade e distanciamento, evitando a retórica dos “profissionais do protesto”, hoje em dia enredada com alguns discursos políticos. Dito de outro modo: em vez de nos ficarmos pela facilidade das grandes abstracções — os valores e narrativas do cinema não são estranhos aos respectivos contextos sociais e políticos —, será, pelo menos, esclarecedor não simplificarmos algumas especificidades do cinema iraniano. Até porque, felizmente, o vamos conhecendo no mercado português, sobretudo graças à acção de alguns distribuidores e exibidores independentes que não desistem de expor e celebrar a pluralidade do cinema contemporâneo (a par de muitas memórias cinéfilas mais ou menos “antigas”).
A esse propósito, importa também registar mais duas recentes tomadas de posição. Dois dias depois da notícia da Variety, a Leopardo Filmes (distribuidora de O Mal Não Existe) e o LEFFEST (que, em 2017, exibiu outro título de Rasoulof: A Man of Integrity) emitiram um comunicado sobre a “prisão arbitrária” de Rasoulof e Al-Ahmad; aí se recordava que a perseguição de que Rasoulof tem sido objecto não é estranha ao facto de estar a trabalhar em Intentional Crime, sobre a morte “em circunstâncias obscuras” do poeta iraniano Baktash Abtin.
Entretanto, a Midas Filmes anunciou “uma semana de filmes em solidariedade com os cineastas iranianos presos” (28 julho/4 agosto, no cinema Ideal, Lisboa). Será exibido o já citado A Morte Não Existe e ainda obras de Jafar Panahi (Taxi e 3 Rostos), Abbas Kiarostami (Shirin e Like Someone in Love), Asghar Farhadi (O Vendedor) e Saeed Roustaee (A Lei de Teerão). Sem esquecer que A Lei de Teerão é um lançamento recente da Leopardo Filmes, dando a conhecer entre nós um dos cineastas que, em maio, marcou de forma indelével a programação de Cannes (com o seu mais recente trabalho, Leila’s Brothers). E ainda que, na passada quinta-feira, nesta caso com chancela da Midas Filmes, chegou também às salas portuguesas o magnífico Estrada Fora, subtil parábola política que marca a estreia na longa-metragem de Panah Panahi, filho de Jafar Panahi.
Qual o eco de todas estas convulsões? Diverso e contraditório. Observemos o exemplo de um site tão universal como o IMDb, com mais de 80 milhões de utilizadores registados: não encontrei uma única linha sobre o que está a acontecer no cinema do Irão (admito que, na sua estrutura labiríntica, algo me tenha escapado). Os destaques noticiosos do IMDb vão para o novo John Wick, com Keanu Reeves, ou ainda um video com “todas as razões para adorarmos Ryan Gosling”. Nada disso será razão para suspeitar da honestidade do IMDb. Em todo o caso, decorre de uma opção jornalística sobre a qual poucas vezes reflectimos: informar não é apenas escolher a verdade contra a mentira, é também estabelecer hierarquias e prioridades com o material que se noticia. O amor dos cineastas do Irão pelo povo do seu país justifica, no mínimo, que não escolhamos a indiferença contra a cinefilia.