sexta-feira, agosto 19, 2022

A comédia francesa
à procura da sua tradição

Gérard Depardieu e Kev Adams:
como reinventar as memórias clássicas da comédia?

Kev Adams é um dos grandes casos de sucesso na mais recente produção de comédias em França. No novo filme Casa de Repouso, ele aposta em ser intérprete, argumentista e produtor: bom esforço, resultado mediano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Gérard Depardieu
Perante a comédia Casa de Repouso, esta semana lançada nas salas portuguesas, é muito provável que, para muitos espectadores (incluindo o autor deste texto), o primeiro motivo de curiosidade seja, ou possa ser, a presença de um nome lendário dos últimos 50 anos da história do cinema francês: Gérard Depardieu.
Ele surge como uma espécie de líder natural de uma simpática galeria de veteranos a interpretar, precisamente, os idosos que vivem na “casa de repouso” a que se refere o título. Ironicamente, Depardieu, com 73 anos, é o mais novo de todos eles, sendo Marthe Villalonga a mais velha, com 90 anos — vimo-la, por exemplo, no papel de mãe de Catherine Deneuve, em A Minha Estação Preferida (1993), de André Téchiné. A eles se juntam Daniel Prévost, figura lendária do teatro e do cinema, Mylène Demongeot, célebre desde os anos 60 graças à trilogia de Fantômas, e Jean-Luc Bideau, nome emblemático da “nova vaga” do cinema suíço.
Tal expectativa corre o risco de passar ao lado daquele que é o verdadeiro motor de Casa de Repouso. Não o realizador, Thomas Gilou: na sua filmografia encontramos os sucessos de La Vérité Si Je Mens! (1997) e respectivas sequelas, mas o seu trabalho está longe de se distinguir por qualquer marca pessoal, ainda menos “autoral”. Na verdade, quem ocupa o centro de tudo isto é Kev Adams, aos 31 anos um caso sério de popularidade em França, primeiro através de espectáculos de “stand-up”, depois em televisão e cinema. Em Casa de Repouso, ele acumula três funções: intérprete, argumentista e produtor.

Anedotas vs. cinema

Um factor decisivo para o sucesso de Adams foi a série televisiva Soda, cuja primeira difusão, em três temporadas, ocorreu entre 2011 e 2015, no canal M6. A sua personagem, de nome Adam, é um jovem não muito brilhante, militantemente preguiçoso, que vive a passagem da adolescência à idade adulta no seio de uma família que está longe de o motivar para grandes proezas.
A curiosidade maior da série provém do seu dispositivo narrativo. Na sua fase final gerou dois telefilmes, mas no essencial trata-se de um conjunto de mais de sete centenas de episódios cuja duração individual não excede os 3 minutos (muitos estão disponíveis no YouTube): são breves anedotas “sociológicas” que tentam fixar, com humor e ironia, os sinais de uma época e, em particular, as diferenças entre gerações. Dir-se-ia que Adams quis “saltar” para uma nova dimensão narrativa, tentando satisfazer as necessidades dramatúrgicas de uma longa-metragem. E não há dúvida que conseguiu, pelo menos, inventar uma personagem com evidentes potencialidades.
Assim, ele interpreta Milann Rousseau, símbolo “perfeito” da incapacidade de integração social: tendo vivido a infância e a adolescência num orfanato, torna-se um adulto sem eira nem beira, regularmente envolvido com a justiça por causa das atribulações (mais ou menos benignas, mas sistemáticas) que provoca nos empregos por onde vai passando… Tem mesmo um amigo advogado que, além de lhe resolver os problemas legais, o acolheu no seu apartamento. Até que Milann se vê obrigado a enfrentar um dos seus maiores “terrores”: lidar com os mais velhos. Isto porque o seu amigo conseguiu evitar-lhe uma pena de prisão, substituída por um período de trabalho social… numa casa de repouso para idosos!
Enfim, o desenvolvimento de tudo isto tem tanto de sugestivo como de previsível. Depois do pânico inicial, Milann vai descobrindo um universo bastante mais rico e complexo do que imaginava — desde logo, através das relações com a personagem de Depardieu, velha glória do pugilismo —, transformando Casa de Repouso num pequeno conto moral cuja simpatia não esconde o esquematismo da concepção.

Funès & etc.

Muito provavelmente, Kev Adams anda à procura das ligações possíveis com uma tradição de comédia que, sobretudo ao longo das décadas de 1960/70, produziu grandes fenómenos de popularidade (e não apenas no interior do mercado francês). A sua energia apoiava-se na desconcertante versatilidade de actores como Bourvil (1917-1970) ou Louis de Funès (1914-1983) — lembremos apenas o exemplo festivo de A Grande Paródia (1966), de Gérard Oury, que ambos protagonizaram.
Falta a Adams a capacidade de elaborar uma acção que consiga ser algo mais do que uma acumulação de pequenas peripécias, dir-se-ia uma antologia de “sketches” (alguns de insólito humor, outros de escassa imaginação) para um programa de televisão com uma lógica de seriado. É verdade que os “hóspedes” desta Casa de Repouso escapam ao paternalismo com que, não poucas vezes, o nosso mundo mediático trata os mais velhos. O certo é que isso está longe de ser suficiente para conseguir algo de realmente criativo, de alguma maneira cúmplice dos valores daquela tradição. Fica, a propósito, uma sugestão complementar e, a meu ver, esclarecedora: ver ou ver O Avarento (1980), com Louis de Funès, disponível na Netflix.