sexta-feira, julho 08, 2022

Cinema, confinamento & etc.

O Leopardo (1963)
— Alain Delon e Claudia Cardinale filmados por Visconti

Repensar o cinema, aqui e agora, é uma tarefa que não pode ignorar as regras dominantes do consumo dos filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho), com o título 'Da diferença à indiferença'.

Investigador e professor de cinema, José Bogalheiro acaba de publicar um livro, tão breve quanto motivador, a que chamou Se Confinado um Espectador (ed. Documenta). Trata-se de uma colectânea de textos escritos entre novembro de 2020 e julho de 2021 (para o site “À Pala de Walsh”), nascidos, tal como o título sugere, em contexto de pandemia, assombrados pelos sinais de progressiva decomposição dos circuitos clássicos do cinema.
No primeiro texto, motivado pelo filme A Voz Humana (2020), de Pedro Almodóvar, o autor recorda mesmo que “de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema.” Não sem concluir que importa não desistir do voto formulado pelo próprio Almodóvar no sentido de não esquecermos as emoções do fenómeno cinematográfico, recomendando aos espectadores que “vão ao cinema, pois todas essas emoções se descobrem apenas num grande ecrã, entre desconhecidos, e às escuras.” O subtítulo do livro, convém sublinhar, é esclarecedor: O cinema como metamorfose da experiência interior.
Directa ou indirectamente, o livro de José Bogalheiro impele-nos a regressar a algum tipo de reflexão sobre os poderes e perversões da conjuntura virtual — entenda-se: o poder imenso das plataformas de streaming — em que os filmes passaram a viver no imaginário dos espectadores (ou a morrer na memória colectiva).
E não apenas por causa do contraste que pode existir entre a grandeza física de um ecrã de uma sala de cinema e a insuperável “pequenez” das nossas experiências caseiras, mesmo quando marcadas por suplementos técnicos que o marketing não desiste de valorizar. O que está em jogo é a diferença radical entre os valores de uma cinefilia indissociável de uma história frondosa do cinema com mais de um século — sempre envolvida por um código tácito de comportamentos sociais — e a ligeireza, tão festiva quanto irresponsável, do consumo indiferenciado de filmes.
Nesse contexto de indiferenciação, os filmes já não são filmes; como gostam de dizer alguns executivos de empresas de cinema, são “produtos”. Não é uma banal troca de palavras: para tal discurso, o cinema como entidade específica da história da humanidade não existe. No limite, podemos encontrar na Netflix um filme como Austerlitz (1960), de Abel Gance, sem que haja uma única informação, ainda que esquemática ou banalmente enciclopédica, sobre o papel criativo e o lugar mítico do seu realizador na dinâmica histórica e artística do grande cinema popular (nota pedagógica: muitos exemplos deste tipo, primários e chocantes, podem encontrar-se em quase todas as plataformas).
Num dos seus textos, José Bogalheiro recorda outro tipo de “objectificação” dos filmes. Assim, há quase 60 anos, a difusão de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, adaptando o romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, foi objecto das mais variadas peripécias. Recordemos, simplificando: na estreia, numa sala de Roma, o filme tinha uma duração de 197 minutos, tendo mais tarde ganho a Palma de Ouro de Cannes com 185 minutos — esta versão, que serviu de base ao restauro de 1991, acabou por ser considerada a “definitiva”; pelo meio, a versão “anglo-americana” fez com que, em vários mercados, o filme fosse distribuído em cópias de fraca qualidade, resultantes dos chamados contratipos (cópias de cópias) com crescente degradação da qualidade das imagens.
As atribulações da obra-prima de Visconti podem ser revisitadas como um pequeno conto moral para os nossos tempos de acumulação caótica de imagens e estímulos visuais (e sonoros). Assim, a fixação de O Leopardo na sua cópia “definitiva” está, por certo, contaminada por diversas formas de mercantilismo; ainda assim, foi vivida como uma saga interior ao próprio cinema e às suas componentes específicas.
Nos dias que correm, a exaltação comercial da “diferença” — por exemplo: ter acesso caseiro a um filme “qualquer” — transforma-se, por vezes, num triunfo obsceno da indiferenciação. Seja um filme de Abel Gance, seja a mais vulgar barulheira protagonizada por um super-herói mil vezes reciclado, tudo se acumula na gratificação pueril do consumo. Como José Bogalheiro refere, lembrando George Steiner, “não estamos livres da barbárie” que começa na iliteracia face às imagens. A tragédia política que isso envolve obriga os políticos a pensar as imagens que usam — ou em que são usados.