quarta-feira, maio 11, 2022

Um homem, uma mulher e o seu teatro

Léa Seydoux: o cinema entre desejo e desilusão

Tendo como base um romance de Philip Roth, Traições é mais um belo exemplo do singular intimismo do cinema de Arnaud Desplechin, devidamente sustentado pelo trabalho dos seus actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 abril).

Arnaud Desplechin
Apresentado em ante-estreia no Festival de Cannes de 2021, o mais recente filme de Arnaud Desplechin, Traições, pode levar-nos a pensar na herança de outro cineasta francês, Eric Rohmer: aqui encontramos o mesmo investimento nas palavras e na sua sensualidade, a mesma observação dos humanos como seres que se confessam e atraiçoam, tocando-se ou distanciando-se através da fala.
Enfim, é um simples paralelismo “justificado” pela espantosa elaboração dos diálogos, mesmo se parece pouco possível que, no seu inigualável pudor, Rohmer alguma vez se pudesse ter interessado pelo romance do americano Philip Roth que Desplechin adapta — trata-se de Deception, original de 1990, entre nós publicado como Engano (ed. Dom Quixote, 2013).
No centro dos acontecimentos — serão mesmo acontecimentos ou uma espécie de reportagem íntima contaminada pelo delírio dos sonhos? — está um escritor, de nome Philip, e a sua amante. Encontram-se regularmente; como se escreve na contracapa de uma edição inglesa do romance (Vintage, 1990): “Falam, brincam um com o outro, fazem sexo, contam mentiras.” Entre ironia e crueldade, a mulher do escritor e outras figuras femininas são presenças ambíguas dos próprios diálogos…
O menos que se pode dizer da fascinante encenação de Desplechin é que (tal como Roth, obviamente) o seu filme nunca cede a esse preguiçoso moralismo dos nossos dias, sustentado por valores culturais muito poderosos, que obriga os retratos de homens e mulheres a serem banais matrizes normativas. Há, certamente, uma razão de fundo para que tal aconteça: tal como François Truffaut (para citarmos outra referência da “Nouvelle Vague”), Desplechin filma a partir das singularidades dos seus actores, criando espaço (e tempo!) para que tais singularidades enriqueçam as personagens, libertando-as de qualquer lógica determinista.
Denis Podalydès e Léa Seydoux, respectivamente o escritor e a sua amante, são, de facto, admiráveis na representação de uma ligação que, em última instância, parece só ser possível através da clausura daquela casa em que se encontram. Para usarmos as palavras do próprio Roth, tudo acontece “algures entre desejo e desilusão no longo mergulho para a morte”.
Aliás, vale a pena recordar que, através da avalanche dos seus diálogos, Deception/Engano é, por certo, um dos romances mais teatrais de Roth. Em sentido muito literal: os seus “intermináveis” diálogos apelam à representação no território ritualizado de um palco. Ou ainda: a profusão de vida e desejo que as palavras transportam envolve e, de alguma maneira, sistematiza essa desencantada convivência entre o prazer e a morte, a ânsia dos olhares e o insolúvel enigma do outro. O resultado é um objecto marcante na trajectória de Desplechin, a fazer lembrar, por exemplo, o seu Reis e Rainha (2004), com Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos (também presente no elenco de Traições): um cinema que não desistiu do conceito clássico de personagem nem da precisão de cada imagem, cada som.