quarta-feira, abril 20, 2022

Na intimidade de Susan Sontag

Uma memória de 1962: Anna Karina em Viver a Sua Vida

Com Susan Sontag aprendemos que escrever ou filmar são formas de enfrentar a infinita complexidade da vida íntima, por vezes podem ser actos de renascimento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 abril).

Como falar da intimidade? Como escrever nela e sobre ela? Como olhar e respeitar a sua infinita complexidade? Como mostrá-la? Como filmá-la?
Num texto de 1964 sobre o filme Vivre sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard — estreado em Portugal, em 1973, como Viver a sua Vida —, Susan Sontag celebrava as aventuras narrativas de Godard como “um método de exposição genuinamente novo”. Que faz esse método? Expõe algo que aconteceu: deparamos com uma série de capítulos (“Um filme em doze quadros”, diz o subtítulo) sobre o caminho trágico de Nana, prostituta de Paris interpretada por Anna Karina, então casada com Godard. Como escreve Sontag: “Mostra que algo aconteceu, não por que aconteceu. Expõe a inexorabilidade de um acontecimento.”
O texto está incluindo na colectânea Contra a Interpretação e Outros Ensaios (Gótica, 2004, tradução de José Lima), remetendo-nos para a fronteira de um período da vida de Sontag cujos sinais podemos agora encontrar num livro fascinante intitulado Renascer (Quetzal, 2022, tradução de Nuno Guerreiro Josué). O subtítulo de Renascer esclarece essa cronologia: “Diários e apontamentos, 1947-1963”.
Valerá a pena referir que assistimos, de facto, ao processo multifacetado e convulsivo de construção de uma personalidade — aconteceu, diria ela. Afinal de contas, as primeiras notas são de 23 de novembro de 1947: Sontag nasceu em Nova Iorque a 16 de janeiro de 1933, o que quer dizer que tinha, nessa altura, 14 anos.
Corrijo. Será precipitado e, mais do que isso, simplista considerar que Sontag nos relata a “construção” da sua identidade. Decididamente, esta não é, nem poderia ser, uma narrativa cuja autora se assume como “proprietária” do seu destino, à maneira dos telefilmes que apresentam os seus heróis ou heroínas como seres que se limitam a “ilustrar” um futuro redentor que nós, espectadores, já conhecemos.
No plano simbólico, Sontag vive, morre e renasce através da própria escrita. A justificação para o título do livro surge numa nota de 31 de maio de 1949 em que fala da sua companheira: “A Irene esteve muito perto de me destruir — cristalizando o incipiente sentimento de culpa que sempre tive em relação ao meu lesbianismo, fazendo-me sentir repulsiva perante mim própria. Agora sei a verdade — sei o quanto amar é bom e legítimo — foi-me, de certa forma, dada autorização para viver. Tudo começa a partir de agora — Renasci.”
Sem esquecer que, no limite, este nem sequer pode ser descrito como “um livro de” Susan Sontag. Na verdade, as notas soltas que aqui encontramos resultam de um trabalho de selecção, organização e anotação da responsabilidade de David Rieff, filho de Sontag. Diz ele no prefácio: “No que me diz respeito, ela tinha um direito absoluto de morrer como desejasse. À medida que lutava pela vida, ela não devia nada à posteridade, e muito menos a mim. Mas, obviamente, a sua decisão teve consequências não intencionais — sendo aqui a mais importante o facto de ter passado para mim a decisão de como publicar os escritos que ela deixou para trás.”
Por vezes, sentimos mesmo que as palavras de Sontag nos colocam perante esse assombramento, terno e cruel, inerente ao labor de um grande escritor (ou um grande cineasta). Que é como quem diz: será que queremos entrar no território que para nós se abriu? Somos leitores ou intrusos daquela intimidade? Diz ela, por exemplo, em nota de 8 de agosto de 1960: “Amar é doloroso. É como se nos oferecêssemos para ser esfolados, sabendo que a outra pessoa pode ir-se embora a qualquer momento com a nossa pele.” Mais tarde, a 23 de abril de 1961, isto é relançado de forma escatológica: “O problema das emoções geralmente tem que ver com o seu escoamento. A vida emocional é um complexo sistema de esgotos.”
Tendo em conta que este é um livro de notas escritas até aos 30 anos, importará reconhecer também que não o podemos resumir como um esboço de auto-retrato (Sontag faleceu com 71 anos, a 28 de dezembro de 2004, na sua cidade natal, vítima de síndrome mielodisplásica, uma forma de cancro sanguíneo). Fica, em todo o caso, a herança de uma exigência de escrita que resiste, ponto por ponto, à futilidade, seja privada ou familiar, seja pública e mediática. Ou como está escrito num apontamento de 7 de janeiro de 1958: “A seriedade é realmente para mim uma virtude, uma das poucas que aceito existencialmente e aceitarei emocionalmente. Adoro ser alegre e descuidada, mas isso só tem significado contra um pano de fundo imperativo de seriedade.”