sexta-feira, abril 22, 2022

Mass - Reunião
— os diálogos e os seus silêncios

Evocando um massacre numa escola, Mass-Reunião, escrito e realizado pelo estreante Fran Kranz, é um dos grandes acontecimentos da mais recente produção independente dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 abril).

Revelação do ano? Falo de Fran Kranz, nascido em Los Angeles, em 1981: é um daqueles actores que foi construindo uma carreira mais ou menos secundária (e como secundário) na enxurrada de filmes de terror e comédias “juvenis” gerada por alguma produção independente dos EUA. Até que, há pouco mais de um mês (6 de março), o seu filme de estreia como realizador, Mass, foi consagrado nos Independent Spirit Awards com o Prémio Robert Altman — a distinção, atribuída em nome do autor de Nashville (1975) e Short Cuts (1993), consagra o realizador, o elenco e o director de “casting”.
Pois bem, Mass aí está, lançado com o título português Reunião e convém não termos ilusões: está destinado à mesma passagem discreta pelas salas que passou a “castigar” todos os títulos que não encaixem nas rotinas de super-heróis, filmes de animação e pouco mais.
Que o filme tenha recebido uma distinção para o seu elenco, eis o que está longe de ser banal. Estamos, de facto, perante um impressionante “tour de force” de quatro actores. São eles Jason Isaacs, Martha Plimpton, Reed Birney e Ann Dowd. Os dois primeiros interpretam os pais de um jovem que foi morto durante um tiroteio numa escola; os segundos surgem como os pais do autor do crime — reunem-se seis anos depois da tragédia, tendo como único cenário a igreja onde existe, precisamente, uma sala disponível para encontros relacionados com problemas emocionais do foro íntimo dos participantes.


Tendo em conta que vivemos um tempo em que há toda uma ideologia “purificadora” que trata as relações humanas como mecanismos transparentes e facilmente descritíveis (por exemplo, em certas rubricas de “talk shows” televisivos), importa sublinhar que Mass-Reunião nada tem que ver com tais dispositivos. A perturbação inerente ao passado que as personagens evocam não desemboca, de modo algum, numa qualquer “lição” ou “tese” sobre os casos “semelhantes” que têm pontuado a história social dos EUA nas últimas décadas, aliás com ecos importantes no cinema (lembremos Bowling for Columbine, de Michael Moore, e Elephant, de Gus Van Sant, respectivamente de 2002 e 2003).
Nesta perspectiva, a singularidade cinematográfica de Mass-Reunião não decorre apenas (nem sobretudo) da perturbação inerente aos respectivos ecos sociais, mas sim do modo como os seus “temas” são objecto de um sofisticado tratamento do espaço e do tempo, dos diálogos e seus silêncios. Há muito tempo que não víamos um filme que evocasse de modo tão particular (e tão talentoso) o teatro e o cinema de David Mamet — sem esquecer que Fran Kranz é também autor do argumento.
O que aqui mais conta é esse poder (único, a meu ver) que pode fazer do cinema uma montra da pluralidade das emoções humanas, mesmos as mais devastadoras, expondo-as através de gestos, olhares e palavras que pesam como acontecimentos irredutíveis e irrepetíveis. Da crueza obscena da morte até à hipótese divina do perdão, Mass-Reunião devolve-nos o cinema como linguagem de um fascínio sem equivalente.

>>> Sundance: conversa com os actores e o realizador de Mass.