sexta-feira, março 18, 2022

A tragédia do Homem Morcego [1/2]

[1989]

O vigilante de Gotham City regressou às salas de cinema: Batman é um herói de todas as épocas, desde os “serials” da primeira metade do século XX até às grandes produções dos nossos dias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 fevereiro).

[2022]
Chegou o filme The Batman (3 de março), nova aventura de um dos mais populares super-heróis da banda desenhada e do cinema, agora com Robert Pattinson a estrear-se como intérprete do Homem Morcego. Digamos que não será exactamente um “renascimento”, já que, ao longo das últimas décadas, a personagem tem-se mantido como objecto de muitas variações, algumas admiráveis, outras nem tanto… Talvez se possa mesmo dizer que este filme representará, antes de tudo o mais, uma renovada aposta da DC Comics no sentido de revitalizar uma das suas mais importantes “franchises” — a par, obviamente, do Super-Homem. Vale a pena, por isso, reorganizar algumas memórias.
Nos últimos anos, o vigilante de Gotham City, empenhado em combater o crime fazendo prevalecer um ideal de justiça, tem tido uma vida cinematográfica algo discreta ou, pelo menos, pouco consentânea com a sua aura mitológica e também a sua vocação espectacular. Bastará lembrar que, no século XXI, aquele que é, de longe, o melhor filme ligado ao universo de Batman — Joker (2019), com o genial Joaquin Phoenix — nem sequer o tem como figura central, surgindo apenas como uma personagem discreta, ainda em construção.
Mais do que isso, Batman e Super-Homem têm sido tratados como figuras estranhamente “incompletas”, necessitando de algum apoio dramático para relançar as suas sagas, a começar pelo filme em que, por assim dizer, repartiram as responsabilidades espectaculares: Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça (2016), com um Ben Affleck algo desfasado, deixando a sensação de que a interpretação do homem da capa negra não terá sido uma das escolhas mais felizes no seu trabalho como actor. Reapareceu, é verdade, em Esquadrão Suicida (2016) e nas duas versões de Liga da Justiça (2017 e 2021), mas sempre anulado pela insólita condição de “secundário”.
Hoje em dia, produtos deste género dominam os planos dos grandes estúdios de Hollywood e, nessa medida, determinam o funcionamento dos mercados que cresceram dependentes das suas estratégias de difusão (na prática, o mundo todo). Sintoma eloquente é o facto de há muitos meses assistirmos ao aparecimento regular de notícias, imagens e trailers de The Batman, celebrando mais um grande investimento da DC Comics, procurando recuperar um espaço comercial que tem sido dominado pela produção com chancela Marvel (Vingadores, Homem Aranha, Capitão Marvel, etc.). Tudo isso, claro, é inseparável de elaboradas alianças com o sistema a que pertencem aqueles estúdios — a DC Comics é distribuída pela Warner Bros.; a Marvel está, desde 2009, integrada no império Disney (que pagou 4 mil milhões de dólares para a respectiva aquisição).

[1939]
Cinema & televisão

Os primeiros capítulos cinematográficos de Batman estão ligados a conjunturas de produção muito peculiares, em tudo e por tudo distintas dos modelos actuais. São mesmo “capítulos”, um pouco à maneira dos episódios de uma série televisiva, mas num diferente território de difusão.
O Homem Morcego surgiu, assim, nas salas de cinema, em 1943, quatro anos após a publicação da primeira aventura da personagem criada pelo desenhador Bob Kane e o escritor Bill Finger — acontecera a 30 de março de 1939 no nº 27 da revista Detective Comics. Intitulado Batman/O Homem Morcego, não era exactamente um filme, mas sim um “serial”, isto é, um conjunto de aventuras mais ou menos breves, muito populares desde o período mudo até ao começo da década de 1950: a sua estrutura implicava que o espectador interessado tivesse que regressar alguns dias mais tarde (normalmente uma semana) para conhecer a respectiva continuação.
Novo “serial” seria lançado em 1949, com o título Batman and Robin/Novas Aventuras do Homem Morcego, dando também protagonismo ao jovem parceiro de aventuras do herói. De qualquer modo, uma etapa decisiva aconteceria em 1966 através da aliança de televisão e cinema, quer dizer, rentabilizando em filme o sucesso da série Batman (iniciada no mesmo ano, terminaria em 1968, cumprindo três temporadas).
O estilo de representação de Adam West e Burt Ward (Batman e Robin, respectivamente) poderá parecer-nos, agora, uma risonha caricatura de um passado mais ou menos nostálgico. O certo é que, na altura, essa passagem do pequeno ecrã televisivo para a grandeza das salas escuras representava um sedutor ganho espectacular com o seu quê de pioneiro. Num dos cartazes do filme escrevia-se mesmo: “Pela primeira vez no ecrã de cinema — e a cores!”
Depois, há na história cinematográfica de Batman um hiato de mais de vinte anos. Que aconteceu? Digamos que o cândido heroísmo dos primeiros tempos não “encaixava” nas muitas (e fascinantes!) atribulações artísticas vividas em Hollywood ao longo dos anos 60/70. Mesmo depois de Tubarão (1975), de Steven Spielberg, e A Guerra das Estrelas (1977), de George Lucas, Batman estava longe de ser uma escolha óbvia como matriz da grande aventura — será preciso recordar que a década de 80 foi dominada por um arqueólogo de chapéu e chicote chamado Indiana Jones?
Curiosamente, as coisas começaram a mudar graças ao Super-Homem. Ou seja, através de Superman - O Filme (1978), de Richard Donner, com o saudoso Christopher Reeve. O primeiro Batman da nova era — mais uma vez intitulado apenas Batman — surgiu em 1989, com assinatura do mais talentoso dos excêntricos de Hollywood: Tim Burton. A escolha de Michael Keaton como protagonista era, no mínimo, inesperada, mas funcionou, relançando essa curiosa dialéctica existencial entre a figura do vingador e a sua identidade secreta, o milionário e filantropo Bruce Wayne. O filme foi mesmo um dos maiores sucessos do ano, apenas superado por Indiana Jones e a Grande Cruzada. Sem menosprezar, claro, os outros trunfos do elenco: Kim Basinger e, sobretudo, Jack Nicholson, criando um Joker que serviu de matriz inspiradora de todas as variações que se seguiram.

[1987]
3 x Christian Bale

Tim Burton ainda assinou Batman Regressa (1992) — outra vez com Michael Keaton, agora na companhia de Danny DeVito e Michelle Pfeiffer, isto é, Pinguim e Catwoman, respectivamente — mas, para ele, a “era Batman” tinha chegado ao fim. O que se seguiu não foi propriamente brilhante e, de alguma maneira, bloqueou o desenvolvimento da “franchise”.
Os dois filmes dirigidos por Joel Schumacher — Batman para Sempre (1995) e Batman & Robin (1997) — apostaram num registo mais ou menos paródico, integrando actores como Jim Carrey e Nicole Kidman, no primeiro, e Arnold Schwarzenegger, no segundo. Batman & Robin entrou mesmo na galeria de grandes falhanços involuntariamente “divertidos”, a ponto de alguns fãs mais militantes nem sempre se lembrarem de quem interpretava o próprio Batman. Para a história, recordemos: foi primeiro Val Kilmer e, depois, George Clooney… Na apreciação crítica do segundo filme, Roger Ebert pôs o dedo na ferida: “Percebi que não já interessava quem interpreta Batman. Não está lá ninguém. Feitas as contas, a personagem é apenas o fato.”
Para agravar a situação, alguém se lembrou que a personagem de Catwoman (a que Pfeiffer tinha emprestado uma nova e perversa elegância) podia sustentar um filme. Assim surgiu Catwoman (2004), um desastre à moda antiga dirigido por Pitof, francês especialista em efeitos visuais, com a desamparada Halle Berry a tentar emprestar consistência a uma figurinha bidmensional, reduzida a marioneta de um espectáculo sem imaginação; Sharon Stone também por lá andava, num período em que foi coleccionando falhanços atrás de falhanços, depois da sua assombrosa composição em Casino (1995), de Martin Scorsese.
Enfim, usando uma terminologia da política, é caso para dizer que estavam reunidas as condições para… surgir Christopher Nolan. Depois do impacto de Memento (2000) e Insónia (2002), ele era uma figura em ascensão na máquina de Hollywood. A sua abordagem veio transfigurar o tratamento cinematográfico do universo de Batman, emprestando-lhe (ou devolvendo-lhe) uma vibração física e metafísica que alguns analistas associam à integração de elementos visuais e narrativos provenientes do livro Batman: Year One (1987), escrito por Frank Miller e ilustrado por David Mazzucchelli. Sem esquecer, claro, a contribuição decisiva do novo intérprete, o galês Christian Bale, que Nolan “entronizou” três vezes nos cenários de Gotham City.
Goste-se mais ou goste-se menos, a trilogia dirigida por Nolan — Batman - O Início (2005), O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro das Trevas Renasce (2012) — recolocou Batman numa encruzilhada de peripécias e emoções em que a manutenção da ordem na grande metrópole está sempre contaminada pelas suas memórias de infância, nomeadamente o episódio em que Bruce Wayne, ainda criança, assiste à morte dos próprios pais (evocado em Joker).
Muito para lá de qualquer registo de filme “policial”, a luta entre o Bem e o Mal adquire, assim, uma dimensão trágica que, cena a cena, assombra Bruce Wayne, ameaçando decompor a própria vocação mitológica de Batman. Em O Cavaleiro das Trevas, tal dinâmica tem como ponto de fuga a sofisticada composição do Joker por Heath Ledger (1979-2008) — valeu um Oscar póstumo de melhor actor secundário, persistindo como símbolo universal da paisagem moderna dos super-heróis.