Jessica Chastain e Oscar Isaac: face ao olho clínico da câmara de filmar |
Na série Scenes from a Marriage reencontramos o valor dos olhares, palavras e silêncios que não são uma mercadoria audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 janeiro).
Numa carta enviada a Jean-Paul Sartre, a 19 de janeiro de 1940, Simone de Beauvoir (Lettres à Sartre, ed. Gallimard, 1990) tece algumas considerações sobre o processo de escrita de O Ser e o Nada (que Sartre publicaria em 1943), derivando depois para diversos apontamentos sobre o amor. “Amo-vos”, escreve ela, evitando como sempre o tratamento por “tu” (“Je vous aime”). Por contraste ou ironia, logo a seguir refere também que uma vez, em Saint-Germain-les-Belles, Sartre lhe disse que ela é alguém que, no amor, “não se dá”. Entrecortada por várias considerações domésticas, surge então esta frase radical, de um radicalismo trágico contaminado por uma metódica promessa de riso: “Acontece que o amor não é uma simbiose, mas sobre isso havemos de verter algumas lágrimas noutra altura”.
Há, talvez, outra maneira de dizer isto: a intimidade que o amor deseja, promete ou imagina não é um dado adquirido, muito menos uma garantia enunciada ou, por assim dizer, promulgada pelo contrato (afectivo “ou” legal, eventualmente afectivo “e” legal) que une dois humanos. Da intimidade apenas sabemos que exprime a intensidade microscópica do presente, sem passado que a caucione ou futuro que garanta a sua repetição. Ou como escreve Roland Barthes nos seus Fragmentos de um Discurso Amoroso (Edições 70, Lisboa, 1981, tradução de Isabel Gonçalves): “Passada a primeira confissão, ‘eu amo-te’ deixa de ter significado; nada mais faz do que retomar de modo enigmático, tão vazia parece, a mensagem antiga (que talvez não tenha sido veiculada por estas palavras). Repito-o sem qualquer relevância: sai da linguagem, divaga, onde?”
Reencontro a questão labiríntica da intimidade na prodigiosa mini-série de Hagai Levi, Scenes from a Marriage (à semelhança de outras plataformas de streaming, a HBO ignora a possibilidade de traduzir os seus títulos para português). A inspiração provém de Cenas da Vida Conjugal, mini-série e filme que Ingmar Bergman realizou em 1973. Em termos esquemáticos, assistimos às convulsões do casamento de Jonathan e Mira — interpretados por Oscar Isaac e Jessica Chastain —, num processo de ruptura e reconciliação, amor e ódio, que parece não ter fim. E tanto mais quanto tal processo, ainda que com inevitáveis ressonâncias familiares, profissionais e sociais, só pode ser vivido como “coisa” íntima, alheia a qualquer exterior.
No domínio social (no “nosso” domínio social, entenda-se), a intimidade desapareceu como valor — e quase ninguém encara ou problematiza semelhante desastre existencial. Por um lado, é verdade, a sua simples definição apela a um certo “afastamento” de tudo o que é social. Ao mesmo tempo, no plano social, precisamente, a intimidade surge diariamente reduzida a mercadoria obscena do Big Brother televisivo, fenómeno que, perante a demissão argumentativa das chamadas entidades culturais e políticas, nos massacra com a noção de que a intimidade é “aquilo”. Sintoma triste: tem pertencido apenas a alguns registos de comédia a pedagogia de nos mostrarem a mediocridade do Big Brother — penso, concretamente, no programa de rádio Portugalex (Antena1), nos videos de Nilton (Instagram) e em quadros recentes de Herman José e dos actores do programa Cá por Casa (RTP1).
Ora, aquilo que regressa em Scenes from a Marriage, com uma contundência dramática plena de pudor, é a irredutibilidade de qualquer espaço íntimo. Não se trata de caracterizar o território daquele casal como algo que vai ser “revelado”, dir-se-ia “posto a nu” pelo facto de alguém o encenar e filmar. Afinal, quem pode garantir que o humano se encerra numa fronteira nítida ou estável? Certamente não por acaso, a realização pontua todos os episódios com elementos de mise en scène que nos recordam que estamos perante actores a representar uma ficção (de alguma maneira retomando o efeito de estranheza que Bergman aplicava, “entrevistando” os seus actores, Erland Josephson e Liv Ullmann).
Aquilo que regressa é o carácter intratável, infinitamente vulnerável, de qualquer intimidade. Na certeza de que a sua verdade não é partilhável — qualquer abertura a qualquer exterior anula a sua dinâmica, isto é, decompõe a dimensão íntima, mesmo quando tal dimensão possa ser habitada pela mais cruel ilusão comunicacional.
Nesta perspectiva, Scenes from a Marriage é também um belíssimo testemunho do valor antigo (“bergmaniano”, se quiserem) do trabalho dos actores. Jessica Chastain e Oscar Isaac são, por certo, dois dos mais fabulosos actores contemporâneos — recorde-se esse filme admirável que é Um Ano Muito Violento (2014), de J. C. Chandor, em que interpretavam um casal bem diferente, mas também, de alguma maneira, a experimentar a fragilidade da sua intimidade. Reencontramo-los, aqui, na corda bamba emocional de um trabalho em que, do mais breve movimento do olhar à hesitação gutural de uma palavra, tudo é importante, tudo pertence à maravilhosa instabilidade de ser, de estar vivo. E tudo decorre desse acontecimento sem equivalente que consiste em arriscar tal instabilidade, os seus gestos e também os seus silêncios, face ao olho clínico de uma câmara de filmar.