Nanni Moretti durante a rodagem de Três Andares |
Através da vibração dramática de Três Andares, Nanni Moretti volta a propor uma galeria de personagens a contas com os enigmas do espaço e do tempo, isto é, com a descoberta da sua própria verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 novembro).
O genérico do filme Três Andares é realista, faz-se com imagens noturnas da fachada de um prédio de Roma. Se dúvidas houvesse sobre o facto de Nanni Moretti manter uma ligação forte com o gosto narrativo dos clássicos, mesmo nos mais discretos detalhes, logo sentimos que estamos perante um genérico “à moda antiga”, identificando pacientemente actores e técnicos, tudo envolvido pela música de Franco Piersanti.
Que acontece, então? Terminados os créditos, uma mulher sai do prédio. Pressentimos a sua ansiedade. Transporta um carrinho, caminha com alguma dificuldade e vai escutando no telemóvel uma mensagem que lhe garante que o seu taxi está a caminho. Compreendemos que está grávida, prestes a dar à luz. Nisto, aparece um carro a grande velocidade, claramente descontrolado: atropela uma outra mulher que ia a passar, acabando por se enfiar, literalmente, numa parede de vidro do rés do chão do prédio. Estranhamente, os habitantes da casa abalroada reconhecem o jovem condutor. Ele mora com os pais, que também surgem rapidamente, num dos andares de cima…
Contado assim, com a equívoca objectividade de qualquer sinopse, tudo isto parece mais ou menos esquemático, dir-se-ia um jogo de “peripécias” para captar a atenção do espectador… Em boa verdade, não se passaram mais de dois ou três minutos, mas tanto basta para identificarmos a precisão descritiva, o rigor dramático e a ansiedade moral de um grande cineasta — um dos maiores da actualidade, não apenas da produção italiana, mas de todo o cinema europeu.
Claro que um filme não é um elenco de “temas”. Em todo o caso, a cena de abertura de Três Andares coloca em andamento duas ou três coisas que Moretti quer connosco partilhar: a instabilidade do espaço público, a relação perversa desse espaço com os lugares da intimidade, enfim, a proximidade, talvez mesmo a cumplicidade, dos gestos do quotidiano com o insuperável absurdo da morte.
Assim, Moretti volta a revelar-se um metódico observador do espaço: há nele a capacidade de nos mostrar, e fazer sentir, que a definição de cada personagem decorre sempre de modos muito particulares de viver o espaço, de o habitar ou contradizer, de o estabilizar ou decompor. Ou ainda: Três Andares é um filme sobre aquilo que faz com que os seres humanos vivam e sobrevivam como animais urbanos, submetendo-se à leis da cidade, eventualmente renegando-as ou reinventando-as.
Mas esta não é uma tese sobre modelos “sociológicos”. Tudo isso envolve outra coordenada, social como é óbvio, mas também visceralmente cinematográfica. A saber: o tempo. Será preciso relembrar que o cinema é, como nenhuma outra, uma arte de gestão do espaço e do tempo?
Três Andares desenvolve-se, então, através de três capítulos temporais. Começamos por conhecer a mulher que vai ser mãe… e a família do jovem que provoca o acidente inicial, a mãe advogada, o pai juiz… e também o casal do rés do chão… e ainda a sua filha, uma menina que, por vezes, fica à guarda de outro casal mais velho… Em cada novo capítulo (delimitado por uma legenda), a passagem do tempo permite-nos perceber o misto de transparência e mistério que caracteriza o destino de cada um: as heranças do passado estão a ser constantemente refeitas e reavaliadas no presente que todos partilham.
Não há personagem ou personagens centrais — a beleza interior de Três Andares decorre do seu espírito coral, como se o gesto mais inusitado de uma personagem numa cena pudesse vir a afectar uma outra personagem, nesse momento ausente. Seja como for, os pais do jovem que provoca o acidente inicial adquirem uma discreta função simbólica decorrente do seu envolvimento com a lei. E não será, certamente, por acaso que Moretti, atribuindo à sempre admirável Margherita Buy o papel da mãe advogada, guarde para si próprio a personagem do juiz: a sua intransigência no cumprimento da lei, mesmo penalizando o filho, decorre da nostalgia de uma ordem que a cidade, feita de relações sempre vulneráveis, já não reflecte.
Lembramo-nos, claro, da pulsação trágica de O Quarto do Filho (2001), em que Moretti assumia a personagem do pai. E lembramo-nos também dessa magoada crónica de uma perda que era Minha Mãe (2015), também com o par Buy/Moretti, neste caso enquanto irmãos. Não há dúvida que Três Andares pertence a esse capítulo da obra de Moretti em que o humor parece (ou aparece) vencido pelas atribulações de existências à procura de um qualquer resgate emocional ou moral. Apetece dizer: à procura do espaço e do tempo perdido…
Ainda assim, perpassa por Três Andares um “tema” que, de modo mais ou menos implícito, circula por toda a filmografia de Moretti. Chamemos-lhe a súbita indefinição do espaço e do tempo. Encontramo-lo, por exemplo, no coração de uma das suas comédias mais populares, Palombella Rossa (1989): na sequência de um acidente benigno, o insubstituível Michele Apicella, interpretado por Moretti em vários filmes, atravessa uma temporária perda de memória, descobrindo mesmo, com grande espanto, que está filiado no Partido Comunista (“Io sono un comunista…”). Digamos que as personagens emblemáticas de Moretti se confrontam com a vacilação de todas as coordenadas do seu quotidiano.
Observe-se a estranheza com que a mãe (Alba Rohrwacher) do início de Três Andares vai vivendo algumas situações desse quotidiano, a ponto de duvidar daquilo que vê… Ou ainda o modo como a escolha do novo vestido colorido de Margherita Buy parece recriar uma verdade esquecida do corpo… Os fantasmas e a suave utopia que uma e outra experimentam são ainda elementos do mesmo delicado e comovente realismo.