terça-feira, novembro 23, 2021

Andrei Konchalovsky
— melancolia em tom russo

Aleksey Tryapitsyn, o carteiro do Lago Kenozero

Sete anos depois da sua revelação em Veneza, As Noites Brancas do Carteiro, mais um título magnífico da filmografia de Andrei Konchalovsky, tem estreia nos canais TVCine — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 novembro).

Apesar da muito positiva evolução nos últimos anos, nomeadamente com a diversificação da oferta promovida, em grande parte, pelos distribuidores independentes, o funcionamento do mercado cinematográfico português continua marcado por alguns desencontros com a mais básica actualidade. Em qualquer caso, evitemos a facilidade de condensar a questão numa pueril atribuição de “culpas”. Lembremos apenas, esta semana, mais um exemplo de tais desequilíbrios.
Assim, o lançamento de As Noites Brancas do Carteiro, de Andrei Konchalovsky (será preciso recordar que ele é um dos nomes fulcrais da história moderna do cinema russo?…) ocorre sete anos passados sobre a sua revelação. Esteve, de facto, presente no Festival de Veneza de 2014, tendo valido a Konchalovsky o Leão de Prata de melhor realização; no mesmo ano, passou entre nós no LEFFEST… chegando agora ao cabo (TVCine). Isto depois de já terem sido estreados nas salas portuguesas três títulos notáveis de Konchalovsky: Paraíso (2016), O Pecado (2019) e Caros Camaradas! (2020).
Enfim, o mínimo que se pode dizer é que estamos perante mais um belo exemplo de uma visão sempre envolvida com as singularidades do seu país, sejam elas eminentemente históricas (lembremos a perturbante evocação da Segunda Guerra Mundial, em Paraíso), sejam decorrentes das contradições do presente, como acontece em As Noites Brancas do Carteiro.
Não será necessário acentuar o simbolismo do título, evocando Noites Brancas, de Dostoievski. Seja como for, não se trata de procurar uma “modernização” do que quer que seja, antes de desenvolver um labor narrativo que possui fortíssimas raízes no património literário russo, colocando em cena essa melancolia que nasce do contraste entre as dinâmicas colectivas e os desejos que habitam os destinos individuais.
Tudo se passa numa povoação esquecida das margens do Lago Kenozero, no noroeste da Rússia. Lyokha, o carteiro que o título refere, é uma das figuras vitais na existência daquela pequena aldeia, não só porque distribui o correio, mas também porque, da entrega do dinheiro das pensões aos mais velhos à compra de lâmpadas ou pomadas de que alguém necessita, há nele qualquer coisa de anjo da guarda, a meio caminho entre o trágico e o burlesco. E tanto mais quanto o filme vai sugerindo as diferenças radicais entre esta Rússia que parece ter ficado parada há muitas décadas e os sinais de “progresso” ironicamente representado pelo foguetão lançado de uma base militar.
Konchalovsky construiu o seu filme a partir de um curioso dispositivo documental, tendo como actores os próprios habitantes da região — Irina Ermolova, consagrada actriz teatral, é uma excepção no elenco. Aleksey Tryapitsyn, intérprete de Lyokha e verdadeiro carteiro da aldeia, distingue-se pela desconcertante naturalidade da sua presença, afinal dando vida a uma personagem que representa de modo exemplar o desencanto social de uma região em que, paradoxalmente ou não, persiste um forte sentimento comunitário.