sábado, outubro 09, 2021

Marlon Brando & Elia Kazan

Marlon Brando

Um Eléctrico Chamado Desejo ocupa um lugar central na história do cinema clássico de Hollywood e, em particular, na evolução do trabalho dos actores: a sua estreia ocorreu há 70 anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 setembro), com o título 'Quando Marlon Brando protagonizou uma revolução teatral e cinematográfica'.

Em 1951, o verão de Hollywood estava a ser marcado pelo sucesso de alguns títulos dos mais populares modelos de espectáculo. A começar por uma nova versão do musical Show Boat (já tinha sido filmado duas vezes). Em destaque nas bilheteiras surgiam também um futuro objecto de culto, Um Lugar ao Sol, de George Stevens, tragédia amorosa com o par Elizabeth Taylor/Montgomery Clift, e Eles no Colégio, uma das primeiras comédias da dupla Dean Martin/Jerry Lewis. Nesta conjuntura, o menos que se pode dizer de Um Eléctrico Chamado Desejo, de Elia Kazan, é que se tratava de um filme que não “encaixava” em nenhum dos modelos correntes — a sua estreia ocorreu há 70 anos, mais precisamente no dia 18 de setembro de 1951.
O impacto de Um Eléctrico Chamado Desejo pode resumir-se num nome que continuamos a venerar entre os maiores actores (porventura o maior…) da história do cinema: Marlon Brando. Estávamos, de facto, perante um novo modelo de representação — mais do que isso: uma genuína revolução no entendimento do trabalho específico do actor — que iria reconfigurar, não apenas os filmes, mas todo o sistema mitológico do cinema americano.
As suas singularidades não impediram Um Eléctrico Chamado Desejo de se impor também como um dos grandes sucessos do ano, acabando por figurar no quinto lugar do Top 10 dos mais rentáveis. O maior sucesso de 1951 seria Quo Vadis (estreado em novembro), épico da Roma antiga, outro género também muito na moda, neste caso com assinatura de Mervyn LeRoy e Robert Taylor e Deborah Kerr como actores principais.

Tennnesse Williams
“Stella!”

Se é verdade que Brando permanece como o primeiro e mais forte símbolo de Um Eléctrico Chamado Desejo, não é menos verdade que o seu nome está longe de ser suficiente para entendermos o que estava a acontecer. Até porque a convulsão cinematográfica que o filme protagonizou de forma pioneira começa, não nos filmes, mas nos palcos.
Esta foi a segunda peça de Tennessee Williams por ele adaptada ao cinema, um ano depois de O Jardim Zoológico de Cristal, com Jane Wyman e Kirk Douglas sob a direcção de Irving Rapper. Mais ainda: Um Eléctrico Chamado Desejo tinha estreado na Broadway, em 1947, também sob a direcção de Kazan, também com Brando no papel de Stanley Kowalski.
O impacto da peça está, obviamente, ligado à vibração emocional, envolvida em infinitas nuances sexuais, das três figuras centrais: Kowalski, um homem da classe operária com raízes polacas; a sua mulher Stella, interpretada por Kim Hunter; e a irmã de Stella, Blanche DuBois, procurando refúgio e protecção depois de ter perdido a sua casa para credores, por certo uma das personagens mais complexas e fascinantes do moderno teatro americano, aqui com o rosto de Vivien Leigh, a eterna Scarlett O’Hara de E Tudo o Vento Levou (1939).
Na Broadway, Kim Hunter tinha já assumido a personagem de Stella; é uma das figuras repetentes, tal como Karl Malden, interprete de Mitch, amigo de Stanley. O papel de Blanche pertencera a Jessica Tandy, na altura uma quase desconhecida — tal como Brando, aliás, que só se estrearia em cinema em 1950 em The Men/O Desesperado, de Fred Zinnemann, belo e muito esquecido filme em que interpreta um soldado que a guerra deixou paraplégico.
O misto de precisão realista e vertigem sensual do texto de Tennessee Williams ecoava na performance dos actores e, muito em particular, na composição eminentemente física, mas tendencialmente abstracta, de Brando. Quando ele, num desespero radical, chama pela mulher, o seu grito — “Stella!” — ecoa no filme como sinal de um desafio sem fronteiras: o actor dilui-se na contundência da personagem.

Elia Kazan
Teatro & cinema

Nascido numa família grega, proveniente da Anatólia (chegou aos EUA em 1913, ainda antes de fazer 4 anos), Kazan é o fundamental elo de ligação em toda esta dinâmica criativa. Em 1931, juntamente com Harold Clurman, Cheryl Crawford e Lee Strasberg, criara o Group Theatre: até 1941, integrando nomes como Stella Adler (futura professora de Brando, e também de Robert De Niro e Harvey Keitel), Frances Farmer ou John Garfield, o grupo protagonizou novas formas de entendimento dos textos e do trabalho dos actores que, de uma maneira ou de outra, foram contaminando Hollywood.
Estava, afinal, a desenvolver-se uma crescente influência do Método (assim mesmo, com maiúscula) concebido pelo russo Konstantin Stanislavski, processo que teria uma etapa decisiva, a partir de 1947 — precisamente o ano da estreia de Um Eléctrico Chamado Desejo — com a criação do Actors Studio, em Nova Iorque. Os seus fundadores — Kazan e Crawford, ambos do Group Theatre, e Robert Lewis — viriam a ter um aliado fundamental em Lee Strasberg, que assumiu a direcção quando Kazan, depois de Um Eléctrico Chamado Desejo, decidiu centrar o seu trabalho em Hollywood, para continuar a realizar filmes. Em 1955, assinou A Leste do Paraíso, precisamente com um dos símbolos mais lendários do Actors Studio: James Dean.
Reconvertendo todos os sinais das emoções humanas, aplicando esse misto de técnica e improviso que Stanislavski designava por “memória emocional”, Brando irrompeu assim, com inusitado fulgor, na paisagem do cinema americano. Na história dos Oscars, Um Eléctrico Chamado Desejo tornou-se o primeiro filme a ganhar três, dos quatro, prémios de interpretação: nenhum filme alguma vez arrebatou o quarteto mágico e só um outro conseguiu ganhar três (Network - Escândalo na TV, de Sidney Lumet, em 1977). Os premiados foram Vivien Leigh (actriz), Kim Hunter e Karl Malden (nas categorias secundárias). Marlon Brando estava nomeado, mas não ganhou.