Sienna Miller |
Um Crime Imperfeito confirma que James Toback continua a ser um cineasta fiel a valores visceralmente clássicos, ao mesmo tempo desafiando os nossos hábitos de consumo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 setembro).
Há uma nostalgia cinéfila em que não me reconheço: já não há filmes como antigamente… Não tenho essa visão pessimista da produção contemporânea, sou mesmo dos que vêem o momento presente do cinema marcado por fascinantes contrastes (e contradições). E considero inconsequentes as queixas nostálgicas que escamoteiam o facto de o cinema existir sempre enquadrado por formas concretas de consumo.
A minha mágoa é de outra natureza: já não há consumo como antigamente… A questão reapareceu-me ao descobrir o filme Um Crime Imperfeito (2017), de James Toback, serenamente à deriva nas profundezas da televisão por cabo (TVCine). Comecei por ceder, confesso, à mais fácil memória nostálgica: eis o tipo de filme que, por exemplo, nos tempos heróicos do cinema Quarteto, na rua Flores de Lima, em Lisboa, sob a direcção de Pedro Bandeira Freire, seria um pequeno grande acontecimento, por certo gerando entusiasmo ou desilusão (aliás, entusiasmo e desilusão) entre os seus consumidores…
Bem sei que o Quarteto pertence a uma conjuntura que, por definição, não se repete (inauguradas em 1975, as suas quatro salas encerraram em 2007). O que se perdeu é do domínio da atenção. Atenção a quê? A muitos filmes que são postos a circular. Tristemente, há todo um aparato de marketing indiferente, não apenas a qualquer forma de cinefilia, mas às próprias especificidades dos filmes, agora tratados como “produtos”. No interior desse fechado sistema ideológico, o único dado que distingue o filme de Toback da mais recente banalidade gerada pelos estúdios Marvel são os respectivos orçamentos promocionais.
Enfim, não simplifiquemos: Um Crime Imperfeito é um objecto selvagem, resistente a qualquer modelo de marketing. Aliás, Toback, realizador e argumentista (neste caso, também intérprete), continua a ser aquilo que podemos chamar um “marginal do centro”. Entenda-se: um profissional obviamente ligado ao sistema de Hollywood — obteve uma nomeação para o Oscar de melhor argumento original graças ao seu trabalho em Bugsy (1991), de Barry Levinson —, mas que sempre assinou filmes atípicos, apostando em variações mais ou menos surreais sobre matrizes clássicas, sobretudo do policial e do melodrama.
Na sua filmografia encontramos mesmo um objecto de culto da década de 70, Fingers (1978), entre nós lançado como Melodia para um Assassino. Centrado num pianista a contas com uma família disfuncional (é um dos grandes papéis de Harvey Keitel), a sua bizarra reinvenção do “thriller” daria origem a um “remake” francês, sob a direcção de Jacques Audiard, com o título De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005). Um Crime Imperfeito possui também essa capacidade de gerar uma insólita experiência sensorial a partir daquele que é, para todos os efeitos, um cliché do género: uma mulher — uma actriz, interpretada por Sienna Miller — vive assombrada por um crime que cometeu, começando por duvidar se realmente aconteceu ou tudo não passou de um pesadelo…
Em boa verdade, o que conta é menos o enigma policial (desfeito ao fim de poucos minutos) e mais a celebração de uma estética de assumidos excessos “barrocos”, alheia a qualquer verosimilhança naturalista. Toback faz mesmo o genérico do seu filme com a presença obsessiva do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas (1504), de Hieronymus Bosch (pintura de que existe também uma reprodução na sala da protagonista), recorrendo a várias peças musicais — com destaque para o derradeiro andamento da Sinfonia nº 7 (“Leninegrado”), de Dmitir Shostakovich — para criar uma ambiência “operática” em que espontaneidade e artifício parecem ser duas faces da mesma moeda.
Sintomático é o invulgar trabalho de Sienna Miller, filmada por Toback quase sempre em grande plano, dir-se-ia a meio caminho entre corpo e fantasma — como se, numa espécie de espelho narrativo, a sugestão de constante improviso coincidisse com uma forma suprema de teatralidade. O que, como é fácil perceber, só acentua a marginalidade de Um Crime Imperfeito: quando prevalece a noção de que o cinema é apenas uma acumulação de “produtos” recheados de efeitos especiais, o valor dos actores e actrizes deixou de pesar nas formas dominantes de consumo.