domingo, outubro 10, 2021

Já ninguém sabe que os filmes
são filmados... não "gravados"

O Deserto Vermelho (1964)

Velha e decisiva questão cultural: as palavras que aplicamos para falar dos filmes determinam a nossa percepção global do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 setembro), com o título 'Os filmes são coisas filmadas...'.

Numa cena do filme Pedro, o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, Jean-Paul Belmondo questiona Samuel Fuller sobre “o que é, exactamente, o cinema”. Como Belmondo se exprime em francês e Fuller em inglês, a tradução é garantida pela personagem de Giorgia Moll. E a resposta, lendária, faz parte do cânone cinéfilo: “Um filme é como um campo de batalha — o amor, o ódio, a acção, a violência, a morte, numa palavra, a emoção.
A resposta pertence a uma história e a um imaginário cultural em que os filmes são (ou eram) concebidos, descritos e comentados como objectos… filmados. E não estou a jogar com as palavras. Se os especialistas nos ensinam que já não há “penalties”, mas sim “pontapés da marca de grande penalidade”, faço questão em reivindicar para o cinema o mesmo grau de exigência linguística que se pratica no futebol.
Que faz com que já não se fale em filmagens, havendo cada vez mais discursos que descrevem os filmes como resultado de uma “gravação”? Deparamos mesmo com membros da mais antiga e admirável aristocracia cinematográfica — refiro-me aos actores e actrizes — a dizerem que estiveram a “gravar” um filme. Ou qualquer coisa como: a “gravação” do filme já terminou, agora vem a “edição” (também já quase ninguém aplica essa palavra maravilhosa que é montagem, essencial para qualquer entendimento minimamente consistente da linguagem cinematográfica).
Haverá quem encare tais modos de expressão como consequência da própria evolução tecnológica, não apenas no campo do cinema, mas em todos os domínios do audiovisual. Tendo em conta que quase todos os registos de imagens e sons deixaram de ser feitos nos chamados suportes analógicos (a película, no caso do cinema), será natural que se fale em gravações, não em filmagens…
Natural? Desde quando o enquadramento tecnológico e o aparato técnico das vidas humanas passou a existir como uma “natureza”? Bem pelo contrário, qualquer tarefa que envolva a produção de novas formas de representação das nossas vidas é tudo menos natural — implica conhecimentos e valores que são sempre eminentemente culturais. E tais conhecimentos e valores nunca são estranhos às palavras com que os vivemos, descrevemos e pensamos.
Em boa verdade, a origem desta barbárie de “gravações” é menos complexa do que a boa vontade tecnológica possa fazer crer. Decorre mesmo de algo muito básico: acontece que, com a normalização da fabricação de telenovelas, a noção de “gravação” passou a dominar a profissão das imagens e sons.
Roland Barthes
A noção transporta consigo uma profunda demissão filosófica. Já não se fazem registos para gerar materiais que, através da montagem, dêem origem a uma narrativa. O que se faz é, sobretudo, cumprir um mapa de trabalho para a gestação de um “produto” (uma “gravação”, precisamente) capaz de satisfazer um determinado calendário de difusão.
Tal modo de expressão gera um chocante efeito retroactivo. Até porque não estamos no centro do mundo: as telenovelas não passam de um detalhe no interior de uma visão beata da tecnologia que, através do seu imenso poder cultural, já conseguiu (des)educar duas ou três gerações de jovens espectadores, impondo-lhes o cinema como uma acumulação de “efeitos especiais”. Corremos o risco de ouvir dizer que o mais recente pastel dos estúdios Marvel e um dos filmes de Michelangelo Antonioni actualmente em reposição nas salas portuguesas partilham o facto de terem sido… “gravados”.
Já ninguém tem olhos para olhar um filme como O Deserto Vermelho (1964)? Dizer que Antonioni o “gravou”, com esse génio da direcção fotográfica que foi Carlo Di Palma, é uma afirmação sem sentido, com o mesmo grau de consistência de uma tese literária empenhada em demonstrar que A Cidade e as Serras é o que é porque Eça de Queiroz escolheu software da Microsoft e não da Apple (ou o contrário).
Como Roland Barthes nos ensinou, há uma censura que impede de dizer, mas há também uma censura que obriga a dizer. Agora, há também qualquer coisa de insidioso na nossa cultura globalizada que nos obriga a esquecer. Esquecer o quê? O facto de o cinema possuir uma história imensa, multifacetada e fascinante, com mais de um século. Com muitas memórias gravadas nas nossas cabeças.