ERIC ROHMER (1920-2010) |
Mestre da Nova Vaga, Rohmer volta a estar em foco através do regresso ao circuito comercial, em cópias restauradas, das suas “Comédias e Provérbios”: são seis filmes para redescobrirmos a subtileza de uma obra seduzida pelo poder das palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 outubro).
Que viva Eric Rohmer! O cineasta de A Minha Noite em Casa de Maud (1969) está de volta às salas escuras com as reposições, em cópias restauradas, das suas “Comédias e Provérbios”. A confirmar, além do mais, que a sua trajectória artística, livre e libertária, não necessariamente liberal, se construiu também através do gosto do método, isto é, do prazer da ordem.
Primeiro foram os “Seis Contos Morais”, incluindo A Minha Noite em Casa de Maud e outras pérolas como A Coleccionadora (1967) ou O Joelho de Claire (1970). Cada um deles colocava em cena, justamente, as atribulações da ordem através de personagens na corda bamba dos seus desejos, tentando recobri-los ou redimi-los com a sanção de uma moral. Seguiram-se estas “Comédias e Provérbios”, também seis filmes, rigorosamente cúmplices enquanto conjunto, cada um evoluindo como “ilustração” de uma máxima ou provérbio (também de natureza moral) sobre os ziguezagues das vidas amorosas, as turbulências das relações sociais e os estranhos laços entre dizer a verdade e mentir.
São, afinal, produtos da década de 80, de alguma maneira podendo simbolizar as dinâmicas de um tempo de profundas alterações nos usos e costumes de França (e não só): A Mulher do Aviador (1981), O Bom Casamento (1982), Paulina na Praia (1983), Noites de Lua Cheia (1984), O Raio Verde (1986) e O Amigo da Minha Amiga (1987). Vendo ou revendo agora estes títulos, é impossível não pensar que Rohmer, de forma discreta mas concisa, se assumia como um resistente à globalização dos mercados (e respectivos conceitos de espectáculo), optando por um cinema de sereníssima austeridade técnica, por vezes utilizando mesmo a película de 16mm.
Mesmo à distância, estes são filmes de uma desconcertante, e também fascinante, actualidade temática. E convenhamos que não é uma distância banal: afinal de contas, o primeiro, A Mulher do Aviador, foi rodado há 40 anos. Sem esquecer que uma das regras que aqui prevalece é eminentemente realista. A saber: colher sinais do quotidiano para registar o “ar do tempo”, as vivências de cidadãos anónimos, enfim, as peripécias que fazem de cada vida individual um trajecto irredutível, por certo enredado com outras vidas, mas nunca nelas se diluindo.
Nesta perspectiva, A Mulher do Aviador dá o mote, aplicando uma regra clássica de desenvolvimento melodramático — A conhece B, B encontra C, e por aí fora… —, regra que Rohmer encena como um bailado de exposição e ocultação, coisas precisas e desejos em movimento. Nele encontramos um jovem empregado dos correios que, ao fazer uma visita surpresa à namorada, a encontra com outro homem; ao tentar descobrir quem é esse homem, tem um encontro fortuito com uma adolescente que, qual detective improvisada, se dispõe a ajudá-lo a descobrir o que está a acontecer…
O que assim se expõe são pedaços de vida de diversos meios sociais e profissionais, como se Rohmer procurasse elaborar um pequeno bloco-notas sobre o “aqui e agora” em que os filmes nasceram. Em O Bom Casamento, por exemplo, tudo começa com uma jovem que quer deixar de ser “amante” para encontrar o seu lugar de “esposa”; em Paulina na Praia, uma adolescente descobre que o cenário idílico de umas férias de verão se vai transfigurando numa comédia de paixões imaginadas ou imaginárias…
O caso de Paulina na Praia é tanto mais sugestivo quanto Rohmer aposta numa colagem (obviamente ambígua) à moda narrativa de “erotização” do corpo como sintoma de liberdade — coisa que, como bem sabemos, continua a proliferar por aí. Assim, por um lado, os cenários da praia e a sensualidade da luz transportam sugestões discretamente sexuais; ao mesmo tempo, por outro lado, a vibração de tudo isso não está no “look” dos fatos de banho, mas sim, tal como nos “Contos Morais”, na avalanche das palavras. Ao contrário do que proclama um velho e preguiçoso lugar-comum, as palavras não servem para interromper ou esclarecer a acção — com Rohmer, as palavras são a própria acção.
Tudo isto aconteceu através de uma galeria de actores que Rohmer, em grande parte, “inventou”. Por vezes, no capítulo das actrizes, literalmente: é o caso de Amanda Langlet, a intérprete de Paulina, então com 15 anos. Outras vezes, criando laços que podem prolongar-se de um filme para outro, como se assistíssemos ao seu desenvolvimento (físico e artístico): lembremos os exemplos de Anne-Laure Meury, em A Mulher do Aviador e O Amigo da Minha Amiga, Béatrice Romand, que já vinha de O Joelho de Claire, reaparecendo em O Bom Casamento e O Raio Verde, ou Arielle Dombasle, aqui presente em O Bom Casamento e Paulina na Praia. Sem esquecer, em Noites de Lua Cheia, a presença emblemática de Pascale Ogier, falecida um ano mais tarde, contava 25 anos.
A introdução de cada filme por uma “frase/provérbio” pode, em última instância, definir o seu programa moral. Por exemplo, Paulina na Praia, logo após o título recorda que “quem muito fala, pouco acerta”, enquanto O Raio Verde convoca Rimbaud: “Oh! Esses dias que incendiavam os nossos corações!” E porque, em tudo isto, a questão da graça divina define uma espécie de horizonte latente — explicitado em A Minha Noite em Casa de Maud, precisamente, através da invocação de Pascal —, talvez possamos dizer que o cinema de Rohmer é uma arte de virar a comédia do avesso. Ou como diz o povo: mais vale cair em graça do que ser engraçado.