Para lá dos filmes, de Manoel de Oliveira recebemos uma herança feita de palavras que não perderam actualidade: agora em livro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro).
Começo a folhear Ditos e Escritos, de Manoel de Oliveira, agora editado pela Casa do Cinema Manoel de Oliveira (Fundação de Serralves). Reencontro o fulgor artístico, misto de génio criativo e instinto teórico, que sempre me fascinou no autor de Amor de Perdição (1978). Sem que isso, entenda-se, implique o recalcamento dos momentos em que, ao longo das décadas, o seu trabalho me suscitou dúvidas, resistências e interrogações — mal ou bem, tudo isso está publicado e, se não penso o mesmo todos os dias e para sempre, não renego o que aconteceu.
A minha profunda admiração pela sua pessoa não depende de qualquer somatório pueril de filmes “bons” e “maus”. Tal admiração não é estranha aos momentos que com ele pude partilhar, nomeadamente quando, juntamente com Rodrigo Areias, Oliveira aceitou o nosso convite para participar no plano de produção cinematográfica de Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura. Mas não quero empolar factos e memórias. Se com ele tive alguma intimidade, essa é uma dimensão que, transfigurada pela certeza da morte (tão intensa nos seus filmes), persiste na relação de permanente redescoberta da sua obra.
Cinema e audiovisual
No excelente prefácio de Ditos e Escritos, António Preto recorda, muito justamente, que o seu legado existe para lá de qualquer liofilização cultural (enfim, a expressão é minha). Identificando as “diferentes temáticas” que foram interessando o cineasta, escreve o director da Casa do Cinema Manoel de Oliveira: “O impasse congénito que, até hoje, foi reiteradamente colocando o cinema numa encruzilhada entre a expressão artística e a indústria do entretenimento é uma dessas preocupações que, em muitos dos textos de Oliveira, se desdobra numa reflexão sobre o capital e o comércio, as cedências ideológicas ou, mais recentemente, sobre a distinção entre cinema e audiovisual.”
A certa altura (num texto de 9 de julho de 2014, no jornal Público), Oliveira demarca-se dos termos ancestrais da discussão sobre os dinheiros das práticas artísticas em Portugal, considerando mesmo que, para um actor ou um bailarino, “a sua derradeira glória poderá vir a ser morrer pobre.” E sugere que se pergunte, “por exemplo, quanto aufere o administrador da Lusomundo/Zon, o abafador, aquele que esconde os nossos filmes, e que não responde mais depois de se assegurar com um contrato, e que não responde nem a nós, nem a quem quer ver e mostrar os filmes portugueses.”
São palavras de desencanto de um velho combatente (Oliveira viria a falecer em 2015, contava 106 anos). São palavras que, a meu ver, simplificam de modo pouco feliz a história das relações entre filmes portugueses e o decisivo sector da distribuição/exibição. Até porque, entre outros factos objectivos que podemos lembrar, em 2008, por ocasião do centenário de Oliveira, a mesma empresa que ele refere produziu uma monumental edição de uma parte significativa da sua obra em DVD (contendo um livro que tive o privilégio de coordenar, contando com a colaboração de Jorge Leitão Ramos).
Para lá das muitas clivagens artísticas e económicas que marcaram (e marcam) a produção de filmes em Portugal, creio que podemos e devemos reter uma lição pedagógica inerente à herança de Oliveira — herança que, bem entendido, nada tem a ver com a cobardia dos que sempre difamaram a obra e o homem, desaparecidos em combate desde 2015. É uma lição eminentemente política. A saber: será sempre um equívoco tentar problematizar os dramas do cinema português a partir de uma única entidade, supostamente conhecida, supostamente uniforme e unívoca, a que, por ignorância, preguiça ou chantagem, se dá o nome de “público”.
Arte e cultura
Não tenho soluções mágicas (aliás, nem mágicas nem de qualquer outra natureza). Ainda assim, acredito que valeria a pena perguntar onde estão as causas e quais são os efeitos de um desenvolvimento do audiovisual que, no pós-25 de abril, não consolidou uma indústria portuguesa de cinema, mas fez nascer uma indústria de telenovelas e “reality shows”. Seria, sobretudo, útil perguntar qual a energia cultural de uma sociedade em que o registo audiovisual mais poderoso não são os filmes (portugueses ou não), mas as telenovelas — há 43 anos, convém explicitar. E, já agora, interessarmo-nos também pelo que tem sido feito nas nossas escolas para que crianças e adolescentes sejam formados, não como consumidores de videoclips, mas, por exemplo, como espectadores de filmes.
Num texto do ano 2000 (intitulado “Arte, Arte, Arte”), Oliveira lembra que a cultura não se esgota na “arte”, assim desmontando essa pobre visão burocrática que passou a dominar a sociedade portuguesa, incluindo a maior parte dos pensadores da classe política, encerrando a vida cultural na “especialização” artística. E acrescenta que “cultura é todo o resultado do que vai acontecendo, do que se vai fazendo hábito, como é comer, o modo como se come, e como é feita a comida, como é o futebol e o comportamento dos que jogam e dos que assistem ao jogo, bem como todos os mais etc., resultantes das vivências e dos trabalhos do homem.”
Esta maravilhosa disponibilidade para as “vivências” e “trabalhos” que temos e fazemos recusa qualquer abstração — como Oliveira esclarece, é visceralmente humana e desafia-nos para lidarmos com factos concretos, evitando generalizações paternalistas e reconfortantes. O mesmo texto desemboca numa bela metáfora: “Uma mão tem cinco dedos; lá porque agrade mais a alguém vê-la esculpida com seis dedos, a mão correta continua com cinco.” Ou ainda, em nome de uma cristalina aritmética: “Por tal razão, duas vezes dois são quatro e não devemos dizer que são cinco alegando que terá mais audiência.”