[1969] |
Na história do “western” americano, O Vale do Fugitivo (1969) é um título decisivo na abordagem das relações entre brancos e índios — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 setembro).
Há dias, ao escrever sobre o novo e belíssimo filme de Clint Eastwood, Cry Macho - A Redenção, fui conduzido a algumas memórias do “western”. Com a acção situada na transição das décadas de 1970/80, o novo filme é, de facto, uma variação sobre as matrizes clássicas desse género que se consolidou como um panorama, pleno de contrastes e contradições, da história da formação dos EUA — em particular, como bem sabemos, das convulsões da expansão para Oeste.
O misto de serenidade e desencanto que define a personagem interpretada por Eastwood não é estranho à sua própria trajectória como actor e cineasta, desde o exílio italiano como intérprete dos “westerns spaghetti” de Sergio Leone (culminando em O Bom, o Mau e o Vilão, de 1966), até aos “westerns” que ele próprio assinou e protagonizou. Lembrei-me, em particular, do revivalismo de Bronco Billy, produção de 1980, um dos primeiros títulos em que Eastwood expõe as ambivalências da história e da mitologia, interpretando um “cowboy” de um circo do século XX, desse modo expondo a crueza da memória face aos artifícios do espectáculo.
E lembrei-me também de dois admiráveis “westerns” de 1969, essenciais para compreendermos como este género de filmes integra as mais drásticas interrogações das suas próprias raízes culturais: A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, e O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky. O primeiro, obviamente num contexto bem diferente, lida com os dramas da fronteira EUA/México, centrais na narrativa de Cry Macho; o segundo apresenta uma prodigiosa reflexão crítica sobre as relações entre brancos e índios, recordando a odisseia de Willie Boy, um índio da tribo Paiute, fugindo às autoridades com a sua companheira branca, depois de ter morto o pai dela em situação de legítima defesa.
No contexto português, O Vale do Fugitivo teve especial importância simbólica, já que ilustrou uma dinâmica de exibição em que a dialéctica entre “arte” e “comércio” estava longe do maniqueísmo que triunfou nas últimas décadas, em especial na sequência da formatação do consumo imposta pelo marketing de super-heróis e afins. Assim, em maio de 1971, o filme inaugurou o cinema Apolo 70 (em Lisboa, na av. Júlio Dinis, em frente ao Campo Pequeno), sala em que, graças à excelente programação da responsabilidade do crítico e cineasta Lauro António, prevaleceu a ideia de um cinema plural, sem barreiras temáticas ou estéticas.
Abraham Polonsky |
Robert Redford foi fundamental na criação das condições de produção para que Polonsky regressasse à realização, assumindo também o papel do xerife que persegue Willie Boy, interpretado por Robert Blake (que, dois anos antes, tinha surgido em A Sangue Frio, de Richard Brooks, adaptado do livro de Truman Capote). A relação entre os dois homens transporta os sinais de um novo paradigma histórico: se o xerife representa um conceito de lei e ordem gerado nas convulsões do Oeste, Willie Boy é alguém que, na sequência da “transferência” dos índios para fora das suas terras de origem, se afirma como personagem que já não pertence a nenhum lugar.
O título original, Tell Them Willie Boy Is Here (à letra: “Diz-lhes que Willie Boy está aqui”), exprime de forma contundente, contaminada por uma profunda mágoa poética, essa deriva de alguém que a história condenou a um exílio interior. Quando, agora, deparamos com os discursos politicamente correctos a quererem convencer-nos que o cinema americano “acordou” nos últimos anos para as feridas íntimas do seu país, fica a dúvida se se trata de irresponsabilidade ou provocação. Ou apenas de cândida ignorância.