Começou como a adaptação de uma banda desenhada e transformou-se num fenómeno global: a série televisiva The Walking Dead resistiu mais de uma década: a 11ª temporada chegou a Portugal no dia 23 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto), mantendo-se aqui a referência ao dia 23 como uma data "posterior".
[ 1 ]
Esta seita de humanos [Whisperers] que resistem aos zombies disfarçando-se de zombies revelou-se, no plano dramatúrgico, uma frutuosa invenção. Desde logo, porque permitiu contornar alguma rotina em que a série corria o risco de estagnar; depois, porque potenciou uma viragem decisiva no próprio universo dramático de The Walking Dead.
Assim, a pouco e pouco, os zombies não desapareceram (longe disso, até porque os respectivos efeitos especiais foram sendo cada vez mais sofisticados), mas passaram a existir como uma espécie de assombramento global: a sua ameaça tornou-se o pesadelo colectivo que, em última instância, determina as relações de poder entre os diversos grupos humanos.
Tudo começou com os resistentes liderados pelo xerife Rick Grimes, papel que garantiu ao actor Andrew Lincoln o estatuto de estrela televisiva planetária. A sua “solidão” face aos zombies viria a ser transfigurada pelo aparecimento de novas comunidades. Primeiro, foi o grupo do “Governador” (David Morrissey) nas terceira e quarta temporadas; depois, veio o abalo de Negan, líder hiper-violento, afinal uma ameaça que “veio para ficar” — sabe-se que, de uma maneira ou de outra, estará presente na 11ª temporada, confirmando o seu intérprete, Jeffrey Dean Morgan, como outro dos rostos universais da saga. Aliás, Negan pode servir de eloquente ilustração de um célebre axioma cinematográfico que Alfred Hitchcock gostava de aplicar: “Quanto melhor for o vilão, melhor é o filme”.
Nos últimos tempos, não têm faltado as hipóteses de paralelismos “premonitórios” da série em relação ao Covid-19… Há uma evidente sedução nessa renovada ideia da ficção como algo que “antecipa” a realidade que vivemos, mas convenhamos que tal sugestão não é mais nem menos pertinente do que a evocação de muitos filmes sobre a humanidade face a ameaças virais, de A Ameaça de Andrómeda (1971), de Robert Wise, inspirado no romance de Michael Crichton, até Contágio (2011), de Steven Soderbergh.
Sem esquecer, claro, que a inspiração da série não é estranha a toda uma tradição do género de terror que pontua as mais diversas cinematografias, de Hollywood à produção asiática. Lembremos apenas dois títulos cujas matrizes têm sido infinitamente exploradas: I Walked with a Zombie (título português: Zombie), objecto típico da produção de série B, lançado em 1943, assinado por um dos seus mestres, Jacques Tourneur; e A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero, filme de 1968 que, por assim dizer, definiu o cânone da “era moderna” dos zombies (sendo Romero, precisamente, um dos seus mais empenhados criadores).
Que está, então, em jogo? Na prática, uma viragem simbólica que faz de The Walking Dead um objecto bem diferente dos clichés do terror (sobretudo cinematográfico) que, nas últimas décadas, têm saturado os ecrãs de todo o mundo. Estamos perante uma ficção apocalíptica enredada num sugestivo paradoxo: por um lado, os sinais quotidianos pertencem a um tempo vagamente futurista, mas em tudo e por tudo próximo do nosso presente; por outro lado, a lógica narrativa está marcada pelas tensões (individuais e colectivas) típicas de um “western”. Afinal de contas, Rick é mesmo um xerife. Um dos posters de lançamento da série propunha um magnífico arranjo simbólico: numa auto-estrada com uma grande metrópole em fundo (mais ou menos “novaiorquina”), estão parados centenas de veículos; do lado oposto da auto-estrada, sozinho, não num automóvel, mas no seu cavalo, Rick segue em relação à cidade.