The Nowhere Inn |
Foi um momento forte do IndieLisboa: através do filme The Nowhere Inn, Annie Clark supera os domínios do documentário para construir uma ficção… quase documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 setembro).
Face a um filme tão sedutor e intrigante como The Nowhere Inn (apresentado na secção musical do IndieLisboa 2021), talvez seja inevitável evocar — e, num certo sentido, invocar — alguns modelos históricos. Estamos perante um retrato, que procura ser um auto-retrato, de St. Vincent, a “persona” artística de Annie Clark, fazendo-nos recordar toda uma genealogia de documentários sobre música e músicos que podemos definir a partir do pioneirismo de Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965, marcada pela integração “escandalosa” da guitarra eléctrica.
Tendo em conta que The Nowhere Inn se organiza a partir da vontade de a sua estrela se dar a conhecer “realmente”, para lá das regras do marketing, é a referência de Na Cama com Madonna (1991), de Alek Keshishian, que reaparece também em toda a sua sofisticação temática e actualidade simbólica. Tal como a Material Girl, Annie Clark aposta na utilização da matriz documental, não tanto para uma banal acumulação de registos de canções, antes para revelar uma intimidade paradoxal: expondo o que, por princípio, não decorre de uma lógica promocional, desse modo afirmando-se como alguém que, tendo conquistado o direito de se exprimir na primeira pessoa, define as regras e fronteiras dessa exposição.
Na verdade, o filme realizado por Bill Benz pode suscitar estes paralelismos, mas só mesmo por calculada e, num certo sentido, pedagógica ironia. Dito de outro modo: estamos perante aquilo que se convencionou chamar um “mockumentary”, isto é, uma ficção totalmente controlada que finge ser um documentário, nessa medida questionando os próprios limites daquilo que é possível “documentar”. Trata-se, afinal, de um sub-género com muitas variações históricas, incluindo o genial Zelig (1983), de Woody Allen, e mais recentemente os filmes de Sacha Baron Cohen com a personagem de Borat.
O argumento de The Nowhere Inn foi escrito por Annie Clark e Carrie Brownstein (vocalista e guitarrista da banda Sleater-Kinney). São elas que surgem como personagem principais, assumindo os seus próprios nomes: Carrie foi convocada pela amiga para conceber e realizar um documentário capaz de, precisamente, revelar Annie “como ela é”… Através de peripécias mais ou menos burlescas, as coisas vão-se complicando, quanto mais não seja porque Annie resiste a abordar a prisão do seu pai, optando antes por formas de comportamento que Carrie considera fúteis e irresponsáveis, apenas reforçando os clichés mediáticos em torno do estatuto de estrela pop.
Há em tudo isto um perverso efeito de verdade. O pai de Annie esteve mesmo preso por crimes de fraude financeira (o mais recente álbum de St. Vincent, Daddy’s Home, lançado em maio, tem como ponto de partida emocional o fim da pena de prisão do pai, em 2019). Ao mesmo tempo, o filme está longe de se esgotar em qualquer descrição documental, ainda que paródica, a pouco e pouco adquirindo um desencanto que pode fazer lembrar David Lynch, entre a iminência da tragédia e o filtro cruel do sarcasmo. Sem esquecer as situações insólitas que, inesperadamente, nos fazem lembrar um genuíno gosto clássico do “entertainment” — lembro, em particular, um momento de palco que evoca, de forma muito directa, uma cena de Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen.
Escusado será dizer que, em última instância, The Nowhere Inn supera a condição de filme “sobre” música (até porque as magníficas canções de St. Vincent, quase sempre incompletas, ocupam um tempo relativamente reduzido). Com metódica inteligência, Annie Clark e Carrie Brownstein exploram as contradições desse terreno pantanoso que, no nosso mundo em rede, leva muitos cidadãos anónimos a confundir a energia da sua identidade com a multiplicação de “selfies” no Instagram.
E se é verdade que Annie Clark sempre se distinguiu por uma rigorosa contenção na exposição da sua vida privada, não é menos verdade que tal contenção não exclui o gosto de (alguma) partilha com os outros. A frase promocional no cartaz de The Nowhere Inn não podia ser mais certeira: “A identidade é uma obra de arte”.