Margot Robbie no papel de Sharon Tate, ou o cinema para lá da morte |
Ao tratar Sharon Tate como personagem de Era uma Vez em Hollywood, Quentin Tarantino libertou a sua memória do estatuto de vítima este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).
Quentin Tarantino é um genuíno cinéfilo: alguém que filma a partir de memórias precisas da história do cinema, não para as congelar numa nostalgia complacente, antes revendo-as e reinventando-as como coisa do presente. O seu filme de 2019, Era uma Vez em Hollywood, constitui um exemplo modelar de tal atitude.
Aí revisitamos o ano de 1969, nos cenários da “fábrica de sonhos” da Califórnia, reconvertidos pela emergência de novos protagonistas ligados ao poder crescente da televisão. As personagens interpretadas por Leonardo Di Caprio e Brad Pitt são sintomas dessa conjuntura: figuras de um novo tempo em que persiste a herança da idade de ouro de Hollywood, mesmo se já não parece possível refazer o seu poder mitológico.
Ilustrando a elaborada consciência crítica das raízes estéticas e simbólicas do seu trabalho, Tarantino acaba de lançar uma “novelização” do seu filme, adoptando o formato de bolso e o visual dos tradicionais romances policiais (“pulp fiction”). O livro Once Upon a Time in Hollywood (HarperCollins) surgiu, assim, como expressão de uma ancestral relação de amor — entre a narrativa cinematográfica e o desejo literário da escrita.
Tarantino tem dado vários entrevistas sobre esta estreia como romancista, afinal um prolongamento do seu trabalho como escritor de argumentos: foi, aliás, como argumentista que já ganhou dois Oscars, com Pulp Fiction (1994) e Django Libertado (2012). Há dias, no programa “The Jess Cagle Show” da rádio SiriusXM, falou das memórias de Sharon Tate (1943-1969) e do seu tratamento enquanto personagem de Era uma Vez em Hollywood.
Mesmo não conhecendo o filme, o leitor saberá que Sharon Tate, na altura casada com Roman Polanski, foi assassinada a 9 de agosto de 1969 pelo gang da Família Manson. E, sobretudo para quem não conhece o filme, creio que é essencial não revelar como é que a personagem de Tate, interpretada por Margot Robbie, surge encenada por Tarantino…
Gostaria apenas de citar algumas palavras cristalinas de Tarantino à Sirius XM, depois de evocar a sua deslumbrada descoberta da actriz na comédia policial The Wrecking Crew/Um Perigo em Cada Curva, aliás citada em Era uma Vez em Hollywood (foi em 1968, tinha Tarantino cinco anos). Diz ele que “é horrível que ela tenho sido definida (apenas) através do seu assassinato”. E acrescenta que um dos aspectos de que se orgulha é o facto de, “depois do filme”, já não ser definida dessa maneira. Graças ao filme, e à composição de Margot Robbie, deixou de ser vista através do “estatuto de vítima” — é alguém “com significado” e não apenas uma “estatística”.
Poderemos recordar que, para muitos cinéfilos, em particular os jovens espectadores das décadas de 60/70, Tate nunca foi uma mera “estatística”, quanto mais não fosse por causa do seu protagonismo no popularíssimo Por Favor, Não Me Morda o Pescoço (1967), homenagem paródica de Polanski aos filmes de vampiros que, subtilmente, se vai transformando em fábula política. Mas as palavras de Tarantino não envolvem apenas a preservação dessas memórias.
De que se trata, então? Em boa verdade, creio que aquilo que está em jogo é o poder social e simbólico do cinema. Quando refere a alteração da percepção de Sharon Tate através do seu filme, Tarantino está a celebrar o cinema, não como um entretenimento abstracto, antes um evento específico através do qual a nossa visão do mundo — e, nessa medida, as formas concretas do nosso conhecimento — vive um processo de permanente transfiguração.
Não é secundária esta questão, sobretudo se nos lembrarmos que, nas últimas duas décadas, o triunfo económico e promocional dos super-heróis (com alguns filmes magníficos, não é isso que está em causa) consolidou uma imagem esquemática, profundamente redutora, da diversidade cinematográfica. Temos estado a desvalorizar a dimensão social do próprio cinema. “Social”, entenda-se, não é uma banal derivação das redes (ditas) sociais, muito menos a definição do cinema como um sermão sociológico. Ao evocar Sharon Tate através, e para lá, da sua morte, Tarantino celebra o cinema como coisa íntima do nosso olhar. Não há nada mais social.