terça-feira, agosto 03, 2021

"Os Homens do Presidente"
— a verdade e as suas narrativas

Dustin Hoffman e Robert Redford
Os Homens do Presidente (1976)

Os Homens do Presidente (1976), sobre o escândalo Watergate, é um filme sempre actual: em cena está a elaboração narrativa da verdade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 junho), com o título 'A verdade dos factos e o seu drama'.

A estreia do filme romeno Colectiv - Um Caso de Corrupção relançou na actualidade algum pensamento crítico sobre o jornalismo. Retomando também um desafio cinematográfico: como figurar o trabalho jornalístico?
A questão é tanto mais pertinente quanto há toda uma ideologia político-mediática que passou a alimentar formas pueris de heroicização do jornalista. Em algumas das suas variantes, o labor específico do jornalismo — conhecer a complexidade do mundo — passou a ser confundido com a instauração de tribunais “populares” de que o jornalista seria o juiz sem recurso e, no limite, o demiurgo inimputável.
O filme debruça-se sobre a tragédia vivida, em 2015, num clube noturno de Bucareste (de nome Colectiv), quando um incêndio provocou a morte imediata de 27 pessoas. Nas semanas seguintes, o falecimento de mais 37 pessoas que tinham ficado feridas, algumas delas sem gravidade, veio expor toda uma teia de corrupção no sistema hospitalar da Roménia, em particular através da venda de desinfectantes cuja composição tinha sido viciada.
O impacto do filme realizado por Alexander Nanau é tanto maior quanto a sua estratégia documental evolui em paralelo com a própria investigação jornalística — a equipa de Nanau viveu e conviveu com os jornalistas da Gazeta Sporturilor que expuseram os factos. Daí a sugestiva evocação de outros filmes que, não necessariamente em registo documental, tratam esse modelo de investigação, suas opções e limites — entre tais filmes emerge o clássico Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula.
Tratou-se, neste caso, de evocar a investigação de Bob Woodward e Carl Bernstein, para o jornal The Washington Post, sobre o chamado escândalo Watergate — Robert Redford, também produtor do filme, interpreta Woodward, estando a personagem de Bernstein entregue a Dustin Hoffman. Em termos esquemáticos, lembremos que, em 1972, um assalto à sede do Comité Nacional Democrata, nos edifícios Watergate, em Washington, suscitou suspeitas que foram envolvendo vários membros da administração de Richard Nixon. A confirmação dessas suspeitas, apontando para “todos os homens do presidente” (para usarmos a expressão do título original, All the President’s Men), desembocaria na resignação de Nixon, no verão de 1974, cerca de dois anos depois do assalto.
Vale a pena lembrar a celeridade da produção do filme: a sua estreia ocorreu, nas salas dos EUA, a 4 de abril de 1976 (chegaria a Portugal em janeiro de 1977), tendo Nixon resignado a 9 de agosto de 1974. Não é, entenda-se, uma banal curiosidade: vivia-se um tempo ainda não contaminado pela ilusória aceleração informativa do presente, com o cinema a funcionar como elemento criativo da “consciência popular” da política. Ou ainda: um tempo em que as redes do tecido social não estavam confinadas aos mecanismos do virtual.
Adaptado do livro que a dupla Woodward/Bernstein escreveu sobre a sua investigação, o extraordinário argumento assinado por William Goldman confere especial importância a essa questão do tempo jornalístico. Há mesmo vários momentos do filme em que a intensidade dramática nasce de uma dúvida pacientemente formulada e reformulada por Ben Bradlee (Jason Robards), o lendário editor executivo de The Washington Post (em 2017, a sua personagem foi interpretada por Tom Hanks no filme The Post, de Steven Spielberg). Assim, para Bradlee, não se trata apenas de discutir a pertinência, isto é, a veracidade confirmada das informações que vão sendo recolhidas por Woodward e Bernstein; importa também avaliar o momento em que tais informações adquirem consistência e coerência para serem tratadas como matéria para publicação.
Nesta perspectiva, Os Homens do Presidente é um objecto de cinema cuja riqueza filosófica excede a clássica dicotomia “verdade/mentira”. Entenda-se: ninguém menospreza, como é óbvio, a procura da verdade dos factos — em última instância, seria o valor cristalino dessa verdade a provocar a resignação de Nixon. Acontece que nenhuma narrativa jornalística pode dispensar uma permanente reflexão sobre as linguagens que sustentam a sua relação com os factos. Talvez seja essa a dimensão mais contundente, porque mais perturbante, do admirável filme de Pakula: a verdade não existe, disponível, imóvel e unívoca, num altar imaculado, enraiza-se no movimento das narrativas que nos fazem ser animais sociais.