Al Pacino e Kitty Winn |
Meio século depois da estreia, Pânico em Needle Park é um filme que continua a distinguir-se por uma fundamental energia realista — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 julho), com o título'Face ao olho gelado da câmara'.
Penso na facilidade com que, através de manchetes delirantes e efémeras, se aplica a palavra “chocante”. Objectivo: designar aquilo que, supostamente, abala as estruturas de toda a sociedade. Trata-se de um jogo pueril: na semana seguinte, eventualmente daí a poucas horas, o “choque” de uma notícia, acontecimento ou filme acaba substituído por um qualquer sucedâneo, igualmente superficial e fugaz. Adoptámos o “choque” (“bom” ou “mau”, não é essa a questão) como um valor cultural.
Jerry Schatzberg |
Uma efeméride destes dias ajuda-me a acrescentar um pouco mais a esse misto de desencanto e fascínio. Assim, está a fazer 50 anos um filme que adoro e, creio, terá sido marcante para alguns espectadores da minha geração: foi a 13 de julho de 1971 que Pânico em Needle Park, uma realização de Jerry Schatzberg, se estreou na salas dos EUA.
A expressão Needle Park (à letra: “parque das agulhas”) designava, na altura, a zona de Sherman Square, em Manhattan, local de venda de drogas onde se cruzavam consumidores e vendedores. O filme acompanha a saga de Bobby e Helen — interpretados por Al Pacino e Kitty Winn, respectivamente —, vivendo um turbilhão em que coexistem os períodos em que escasseiam as doses de heroína (é esse o “pânico” a que o título se refere), a venda do corpo para obter dinheiro e a crescente degradação das condições materiais de habitação e alimentação.
Claro que o “choque” de Pânico em Needle Park não era estranho a esse novelo de situações. Seja como for, faço questão em dizer que resisto a hierarquizar os filmes em função do seu “tema” — afinal de contas, Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock, é “apenas” sobre um homem que, da sala de sua casa, observa a vizinhança… e não deixa de ser uma esplendorosa obra-prima.
Essencial era o facto de tudo aquilo que acontece no filme passar pelos corpos dos actores. Passar, insisto: há (ou pode haver) no cinema esse ritual de passagem que faz com que um homem ou uma mulher, face ao olho gelado de uma câmara, mesmo através do máximo artifício, possa imprimir no ecrã uma verdade primitiva que tem tanto de singular como de irredutível. Vemo-los como seres em que nem tudo será do domínio corporal, mas tudo passa pelo corpo — incluindo as palavras que não conseguem inventariar a comoção que define a vulnerabilidade de ser. E escusado será sublinhar a importância de o par de intérpretes principais terem chegado ao cinema depois de uma sofisticada prática teatral (Pânico em Needle Park foi, para ambos, o arranque da carreira cinematográfica).
Realismo, quero eu dizer. Tanto mais paradoxal e admirável quanto Schatzberg, além de cineasta, possui também uma obra brilhante como fotógrafo retratista e de moda. O cinema americano da época era um caldeirão fascinante de criadores apostados em reconverter os métodos de relação com a realidade que filmavam, expondo a urgência — não apenas cinéfila, mas narrativa — de integrar as lições do classicismo, superando-o. Para nos ficarmos por dois títulos muito premiados desse ano de 1971, lembremos The French Connection, de William Friedkin, sobre outro domínio da droga (os cartéis internacionais), e The Last Picture Show, de Peter Bogdanovich, um retrato da geração marcada pela guerra da Coreia.
Como se costuma dizer, o resto é história. No ano seguinte, Al Pacino contracenava com Marlon Brando em O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Quanto a Kitty Winn, por opção pessoal, abandonou o cinema ainda na década de 70; Pânico em Needle Park valeu-lhe o único prémio da sua carreira: melhor actriz no Festival de Cannes de 1971.