segunda-feira, julho 19, 2021

"Titane", Palma de Ouro

O júri do 74º Festival de Cinema de Cannes, presidido por Spike Lee (com o rosto a dominar o cartaz), não receou consagrar um dos filmes mais ousados desta edição: Titane, uma fábula tecno-carnal, arrebatou a Palma de Ouro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 julho).

Se “choque” foi uma palavra incontornável da 74ª edição do Festival de Cannes, dois filmes ilustraram os respectivos ecos mediáticos: Benedetta, em que Paul Verhoeven encena o amor de duas freiras na Itália do século XVII, e Titane, fábula terna e cruel de Julia Ducournau sobre uma jovem em cujas veias o vermelho do sangue foi substituído pelo negrume do óleo de motores de automóveis… O júri oficial, presidido pelo realizador americano Spike Lee, deixou de lado as atribulações do amor lésbico, escolhendo consagrar a fábula tecno-carnal de Ducourau: Titane ganhou a Palma de Ouro [video: conferência de imprensa da equipa do filme].
Se o mais importante fosse a logística de palco da cerimónia dos prémios, esta edição festiva de Cannes (depois da interrupção forçada de 2020) ficaria como um desastre apoteótico. A começar pelo facto de Spike Lee, muito à vontade e sempre bem disposto, com um exuberante fato colorido, se preparar para anunciar a Palma de Ouro (o prémio final, como manda a tradição) logo a abrir a cerimónia… De tal modo que outro membro do júri, o actor francês Tahar Rahim, achou por bem abandonar o seu lugar, sentando-se ao lado do presidente de modo a garantir a boa prossecução dos trabalhos — tudo em ambiente de contagiante boa disposição, há que reconhecer.
Titane
é um objecto de inclassificável fascínio, mesmo se nele podemos reconhecer influências mais ou menos ligadas ao género de terror: a própria Julia Ducournau não se cansa de referir a sua dívida artística para com David Cronenberg. Aliás, a história da jovem que tem uma placa de titânio na cabeça (na sequência de um acidente de automóvel, ainda criança) envolve uma contaminação entre corpo e metal que suscitou muitas comparações com Crash, de Cronenberg (prémio especial do júri em Cannes/1996).
Com a sua ambiência de conto fantástico fabricado através de um realismo delirante dos corpos e da pele, Titane ficou como afirmação festiva de um cinema que não renega, mas dispensa, as regras da dramaturgia clássica. Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que outros títulos também ligados a um certo mal estar de “civilização”, como Tre Piani, de Nanni Moretti, ou Tout S’Est Bien Passé, de François Ozon, terão ficado fora do palmarés devido às suas narrativas mais “tradicionais”.
Sublinhando as singularidades da sua heroína, Julia Ducournau agradeceu o prémio lembrando a importância de combater as “barreiras da normalização que nos encerram e separam”, formulando o desejo de “um mundo mais inclusivo e mais fluido.” Deixando também a palavra de ordem da noite (e de todo o festival): “Obrigado ao júri por ter deixado entrar os monstros.”
As distinções “ex-aequo” (Grande Prémio e Prémio do Júri) fazem supor que os jurados terão tido alguma dificuldade em estabelecer consensos, mesmo se podemos compreender os ecos simbólicos das suas distinções. Assim, o tailandês Apichatpong Weerasethakul lembrou a importância de, em conjuntura pandémica, os governos “acordarem e agirem pelas suas populações” (referindo-se à Tailândia e também à Colômbia, onde o seu filme foi rodado), enquanto o iraniano Asghar Farhadi falou mesmo em “salvar o meu país e acordar as consciências”.
Foi, enfim, uma cerimónia cujas mensagens foram mais fortes que as atribulações de encenação. Ao apresentar o Grande Prémio, Oliver Stone deixou uma dessas mensagens, das mais claras e também das mais urgentes para uma vida mais saudável, quer no plano cultural, quer em termos económicos, de todo o planeta do cinema. A saber: em Cannes foi possível ver o que realmente interessa, isto é, “filmes que não são escritos por algoritmos.”


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PALMARÉS

Palma de Ouro
TITANE, Julia Ducournau

Grande Prémio (ex-aequo)
UN HÉROS, Asghar Farhadi
COMPARTIMENT Nº6, Juho Kuosmanen

Prémio do Júri (ex-aequo)
LE GENOU D'AHED, Nadav Lapid
MEMORIA, Apichatpong Weerasethakul

Realização
Leos Carax (ANNETTE)

Actor
Caleb Landry Jones (NITRAM)

Actriz
Renate Reinsve (JULIE (EN 12 CHAPITRES))

Argumento
Riusuke Hamaguchi (DRIVE MY CAR)

Palma de Ouro (curtas)
TOUS LES CORBEAUX DU MONDE, Yi Tang

Câmara de Ouro
MURINA, Antoneta Kusijanovic