segunda-feira, julho 26, 2021

A inocência perdida de Luis Buñuel

O Charme Discreto da Burguesia (1972)

Agora com uma especialíssima edição em DVD, o cinema de Luis Buñuel cruza realidade e fantasmas, levando-nos a questionar a ordenação moral do nosso mundo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 junho).

Cena clássica do espanhol Luis Buñuel: quatro homens e três mulheres chegam a um palacete, sendo encaminhados para uma sala onde está uma mesa preparada para uma refeição. Deduzimos que serão convidados, uma vez que são recebidos por um empregado, talvez um mordomo, que lhes diz: “O senhor e a senhora não vão demorar.” Há uma estranheza no ar que se adensa quando o mesmo empregado surge com uma travessa com dois frangos assados (em plástico?); deixa-os cair no chão para, de imediato, os apanhar e colocar na mesa…
“Que brincadeira é esta?”, pergunta um dos convivas, logo começando a ouvir-se uma série de sons secos e ritmados, dir-se-ia alguém a martelar. Os sons parecem converter-se em pancadas de Molière, como se assistíssemos ao prólogo de uma representação teatral… A cena passa a ser-nos mostrada a partir de um novo ponto de vista e, de facto, agora, vemos que o espaço em que se encontra a mesa possui uma cortina vermelha que faz lembrar um palco. A cortina abre-se e assim é: as personagens estão num palco, perante uma plateia lotada [video].
É, seguramente, a cena mais célebre de O Charme Discreto da Burguesia, realização de Buñuel que, em representação da França, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro referente a 1972. Nela confluem duas componentes tradicionalmente associadas ao universo buñueliano. A saber: a visão cáustica das classes dominantes e a sensação de que a realidade está sempre em contacto com o seu “oposto” surreal.
O filme ressurgiu agora no mercado português, através de uma magnífica edição em DVD. Mais exactamente, passou a existir uma caixa de obras de Buñuel intitulada “O Período Francês”. Nela encontramos seis títulos fundamentais: Diário de uma Criada de Quarto (1963), adaptação de Octave Mirbeau, em tom de perversa austeridade, com Jeanne Moreau; Belle de Jour (1967), obra-prima absoluta sobre as ambiguidades do desejo e do território conjugal, com Catherine Deneuve; A Via Láctea (1969), revisitando os dogmas do catolicismo através de uma peregrinação a Santiago de Compostela; e ainda a trilogia final de Buñuel que, para lá de O Charme Discreto da Burguesia, inclui O Fantasma da Liberdade (1974) e Este Obscuro Objecto do Desejo (1977). Precisamente para lembrar que a dimensão surreal de Buñuel não é, historicamente, estranha ao surrealismo, a edição integra ainda, como extras, os dois filmes em que colaborou com Salvador Dalí: Um Cão Andaluz (1929) e A Idade de Ouro (1930).
Em qualquer caso, lembremos que momentos como a cena citada não se esgotam na ideia de que a nossa experiência de vida, por mais realista que possa parecer (ou por nós ser descrita), nunca é estranha às atribulações próprias dos sonhos. No limite, tudo se passa como se a própria noção de realidade fosse, não o nosso ponto de partida para habitar o mundo, mas uma ilusão de que é impossível regressar. Como se não houvesse realidade, apenas a impossibilidade de concretizarmos a sua lógica. Ou o pensamento dessa lógica. Jean-Pierre Cassel, um dos intérpretes da cena, diz mesmo estas palavras de pânico: “Que faço aqui? Não conheço o texto.”
Creio, assim, que os títulos dos filmes finais de Buñuel não são meras descrições irónicas (mesmo se é verdade que neles deparamos com as mais desconcertantes formas de humor). O “charme discreto” alude, como é óbvio, a esse misto de distância e sedução com que a “burguesia” mobiliza a nossa atenção. Por outro lado, que a “liberdade” esteja do lado do “fantasma”, eis o mais incómodo dos teoremas políticos. Enfim, o “desejo” e o seu “obscuro objecto” lembram-nos que somos seres inebriados pela nitidez daquilo que, afinal, nos escapa e ilude.
Buñuel tem a sua trajectória criativa associada a peripécias mais ou menos “escandalosas” — recordemos apenas o caso de Viridiana (1961), Palma de Ouro em Cannes, condenado por “blasfémia” pelo Vaticano, tendo sido exibido em Espanha apenas a partir de 1977, cerca de dois anos depois da morte do ditador Francisco Franco. O certo é que a passagem do tempo não anulou a perturbação mais funda do seu cinema. Chamemos-lhe inocência perdida: em filmes como O Charme Discreto da Burguesia, a ordenação moral do mundo pouco mais é do que uma utopia pueril. Ou melhor, um teatro necessário que interpretamos como actores à deriva.