Denzel Washington, As Pequenas Coisas |
Eis um pequeno grande acontecimento na actualidade cinematográfica, mais concretamente nos videoclubes: As Pequenas Coisas revitaliza a tradição do “thriller”, contando com um elenco liderado por Denzel Washington — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 maio).
A discreta chegada do filme As Pequenas Coisas é sintomática do período difícil que os circuitos de cinema estão a atravessar. Escusado será sublinhar que a pandemia afectou, aliás, continua a afectar o funcionamento de todos os mercados. E também já ninguém ignora que a dicotomia salas/plataformas de streaming não pode ser encarada como uma mera questão “moral”, implicando toda uma reflexão sobre as componentes artísticas e as bases económicas do próprio universo cinematográfico. Nesta conjuntura, As Pequenas Coisas está disponível — apenas nos videoclubes —, depois de, nos EUA, ter tido uma carreira repartida entre as salas e a plataforma HBO Max.
Há qualquer coisa de ensurdecedor no “silêncio” promocional que envolve o filme. Por razões que a pandemia pode ter reforçado, mas que estão longe de esclarecer o quase “anonimato” do lançamento de As Pequenas Coisas — são questões específicas das últimas duas décadas da vida dos filmes, da produção à difusão.
Nada a ver, entenda-se, com qualquer juízo de valor sobre o filme que, já agora, no meu caso, é inequivocamente positivo. Acontece que a poderosa máquina promocional, eminentemente global, dos grandes estúdios americanos (neste caso, a Warner Bros.) parece já não saber o que fazer com um filme de perfil clássico, sóbrio, profissionalmente exemplar, em tudo e por tudo exterior ao alarido dos super-heróis que, ciclicamente, enchem os nossos ecrãs e as ruas das nossas cidades com aparatosas promoções.
Dir-se-ia que não basta ter os trunfos que são (ou eram) os actores. E neste caso não é um, não são dois, são três intérpretes todos eles já “oscarizados”: Denzel Washington, Rami Malek e Jared Leto (a composição deste último valeu-lhe nomeações para os prémios da última temporada, na categoria de secundário, quer pelos Globos de Ouro, quer pelo sindicato nos actores). Temos assistido, de facto, a um triste esvaziamento do valor comercial dos actores, favorecendo novos modelos de (des)educação dos espectadores face à pluralidade histórica do cinema: os filmes mais promovidos — aos quais é facultada uma gigantesca ocupação dos mercados — são quase sempre os que ostentam referências de outros domínios (sobretudo banda desenhada e jogos de video), não os que envolvem componentes clássicas da linguagem cinematográfica. A começar pelos actores, precisamente.
Mais ainda: As Pequenas Coisas possui uma estrutura de “thriller” que não pode deixar de evocar um título eminentemente popular — Seven (1995), de David Fincher —, e não apenas pelo facto de se tratar de uma investigação em torno de um suspeito que parece actuar como um “serial killer”; a acção situa-se também na década de 90, como se John Lee Hancock, na dupla condição de argumentista e realizador, tivesse querido explicitar as origens da sua inspiração.
Será que o trabalho de Hancock consegue sustentar uma comparação directa com a sofisticada “mise en scène” de Fincher? Em boa verdade, não creio. Mas não é essa a questão. Podemos dizer, isso sim, que As Pequenas Coisas se inscreve numa tradição temática e estética que, justamente, Seven reconverteu e relançou. Agora, como se prova, essa tradição tornou-se uma componente secundária do mercado e do marketing. Espera-se, além do mais, que não ressurja o discurso demagógico que, tentando escamotear o papel decisivo dos mercados nas orientações dominantes dos espectadores, venha clamar que cabe à “crítica” salvar aquilo que os próprios mercados foram metodicamente desvalorizando.
As Pequenas Coisas exibe o gosto de um valor narrativo que, de facto, está longe de ser acarinhado pela maior parte dos filmes (ditos) de “acção” que passaram a ocupar a linha da frente da indústria. Que valor é esse? Pois bem: o tempo. Entenda-se: o valor dramático da duração de cada cena.
Assim, a investigação dos dois elementos da polícia (interpretados por Washington e Malek) em torno de um suspeito (Leto) desenvolve-se através de um sedutor paradoxo narrativo. Por um lado, a montagem, assinada pelo veterano Robert Frazen, vai instalando uma expectativa que nasce da sensação de que o tempo está a faltar (para resolver os crimes); por outro lado, a duração interna de cada cena é sempre ambígua, dando especial atenção aos detalhes (as “pequenas coisas”) que se acumulam de modo pausado, inesperado e inquietante.
Vale a pena recordar que Hancock tem desenvolvido a sua carreira através de alguns títulos saborosamente atípicos, incluindo The Blind Side/Um Sonho Possível (2009), retrato dos bastidores do basebol que valeu um Oscar de melhor actriz a Sandra Bullock, Ao Encontro de Mr. Banks (2013), evocando Walt Disney, interpretado por Tom Hanks, e O Fundador (2016), com Michael Keaton, sobre as origens dos restaurantes McDonald’s. Agora, com As Pequenas Coisas, ele acrescenta mais um objecto insólito a uma filmografia que não desiste de um obstinado classicismo. Sem esquecer que, entre as proezas artísticas do filme, há ainda uma notável banda sonora de Thomas Newman, também ele um respeitável “marginal” de Hollywood — afinal de contas, já foi nomeado quinze vezes para os Oscars e nunca ganhou…