Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).
Apesar das dificuldades financeiras da família durante a infância e adolescência, Kate Winslet teve uma sólida formação teatral, ganhando experiência nos palcos e começando a trabalhar, a partir dos 16 anos, em pequenos papéis de séries televisivas. Talvez se possa dizer que esses princípios lhe serviram, acima de tudo, para aprender a respeitar a complexidade de cada personagem, seja qual for o seu perfil dramático.
Num filme recente, Ammonite, escrito e realizado por Francis Lee, assume a personagem de Mary Anning, lendária paleontologista da primeira metade do século XIX. Analisando a ambivalência dos seus comportamentos sexuais, nomeadamente na relação com a geóloga Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), Kate Winslet declarou à revista Vanity Fair (setembro 2020): “Poder representar esta personagem que revela tão especial afecto por alguém do mesmo sexo foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha carreira.” Porquê? Precisamente porque o desafio que a personagem envolve convoca e, de alguma maneira, exige capacidade de resistência ao comodismo das ideias feitas: “Estamos de tal maneira condicionados pelas abordagens tradicionais dos ideais românticos no cinema… Mas quando retiramos esses estereótipos, é como uma lufada de ar fresco.”
As suas composições mais ricas, complexas e fascinantes implicam, justamente, o enfrentamento de convenções que, sendo dramáticas, são também morais. Algo do género acontece no filme que lhe valeu aquele que é, até agora, o seu único Oscar (num total de sete nomeações): O Leitor (2008), de Stephen Daldry, baseado num “best-seller” de Bernhard Schlink, odisseia de sobrevivência de uma mulher na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial.
Há em O Leitor um maneirismo narrativo que impede a actriz de levar a sua performance às últimas consequências. Vale a pena, por isso, contrapor-lhe duas interpretações, sem dúvida menos conhecidas, mas de rara subtileza e intensidade. A primeira está em Pecados Íntimos (2006), de Todd Field, um verdadeiro labirinto existencial protagonizado por duas mulheres (Kate Winslet e Jennifer Connelly) que se confrontam com a fragilidade do território conjugal, num processo tendencialmente trágico. O outro exemplo é, a meu ver, um dos filmes maiores da produção americana do século XXI, infelizmente amaldiçoado por um falhanço comercial que o tornou quase invisível: Revolutionary Road (2008), adaptação do romance de Richard Yates por Sam Mendes (na altura casado com Kate Winslet).
Revolutionary Road nasceu da vontade de refazer o par de Titanic: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio interpretam um casal a viver numa zona suburbana do Connecticut, em meados da década de 1950, numa trajectória que não deixa de nos remeter para a série Mare of Easttown. Claro que são épocas e lugares distintos e todo o enquadramento social é diferente, mas deparamos com uma idêntica pulsação dramática: há um abismo entre o destino imaginado pelas personagens e a crueza imposta pelas dores do quotidiano.
Certamente não por acaso, as melhores composições de Kate Winslet estão em filmes em que o gosto pela enigmática densidade das palavras envolve qualquer coisa de subtilmente teatral. Exemplo superior dessa arte de todas as ambivalências do factor humano é Carnage/Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, precisamente a adaptação de uma peça, da autoria da francesa Yasmina Reza. Sem esquecer Roda Gigante (2017), de Woody Allen, drama também dos anos 50 que propõe uma revisão crítica, rara na tradição de Hollywood, do imaginário cultural ligado a Coney Island.
Razões de sobra para reconhecermos em Kate Winslet a simbologia de uma outra tradição, de uma só vez artística e afectiva: ela é mais uma actriz britânica que, a par de figuras lendárias como Vivien Leigh, Elizabeth Taylor ou Julie Andrews, triunfou em Hollywood através de um talento tecido de intransigência e versatilidade. Como se prova pelo brilhantismo de Mare of Easttown, esse é um talento que persiste na idade das plataformas de streaming.